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Mulheres indígenas não sofrem violência sexual. Isso é coisa de mulher branca e rica


É com essa frase, absurda, grotesca e repetida como verdade, que inicio este artigo. E início assim porque essa afirmação não é fruto da ignorância individual, mas do analfabetismo estrutural da sociedade brasileira e, sobretudo, do sistema de justiça, que insiste em negar a violência contra mulheres indígenas.


Como advogada, sou questionada com frequência por profissionais de diversas áreas, especialmente operadores do Direito: “Doutora, é verdade que não existe violência contra mulheres nas aldeias, né?” E, mais uma vez, preciso responder: existe, sim. Mas quando nós, mulheres indígenas, somos tratadas como invisíveis, nossos corpos também desaparecem das estatísticas. Delegacias nos registram como “pardas”. Nossa existência vira um ruído. Nossa dor, um detalhe irrelevante.


Quando falo de analfabetismo social, cultural e histórico dentro do sistema de justiça, refiro-me às aberrações, conscientes e inconscientes, cometidas diariamente por quem deveria proteger. Há algum tempo, fui procurada por uma advogada que  acompanhava o caso de uma mulher indígena, no Sul do Brasil, vítima de estupro coletivo. No parecer antropológico do Ministério Público, o antropólogo, branco, europeu na cabeça, arrogante na prática, afirmou que o estupro coletivo era uma “prática cultural comum” daquele povo indígena.


Sim, você leu certo. O Estado brasileiro, através de um parecer técnico, tentou transformar um crime brutal em tradição.


Aqui está o problema: o eurocentrismo patológico que domina o sistema de justiça brasileiro. Um olhar colonizador que insiste em nos analisar como se fôssemos povos exóticos, sem direitos, sem humanidade, meros objetos de pesquisa. É a prepotência mascarada de “ciência”. É a ignorância deliberada lançando pareceres que não apenas violam vítimas, mas colocam todas as mulheres, indígenas ou não, em risco.


Porque hoje, é sobre nós. Amanhã, quando a cultura for usada como justificativa para qualquer violência, será sobre vocês também.

É preciso repetir, para que não restem dúvidas: nenhum povo indígena pratica estupro coletivo como tradição. Nenhum. Nossa cosmovisão sobre corpo, sexualidade e nudez é completamente diferente da lógica não indígena, que sexualiza tudo o que vê. Para nós, a nudez é natural. O corpo não é objeto. O sexo, para povos de recente contato, não está vinculado ao prazer, mas à procriação, totalmente distinto da sexualidade dominante na sociedade não indígena.

Portanto, quando o sistema de justiça tenta justificar estupro como “cultura indígena”, ele não apenas erra: ele cria insegurança jurídica, alimenta racismo institucional e autoriza, com sua caneta, a barbárie.


Por isso, deixo aqui um apelo direto, firme e urgente: O sistema de justiça brasileiro precisa se atualizar, se educar e se responsabilizar. Precisa parar de tratar povos originários como selvagens, como folclore, como peças de museu. Precisa entender que nós sempre estivemos aqui, e continuaremos aqui, apesar de toda tentativa de apagamento.


A violência contra mulheres indígenas existe. O que não pode mais existir é o silêncio cúmplice de um sistema que insiste em não nos enxergar.

 


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