O GRITO QUE O MERCÚRIO NÃO SILENCIA
- contatoinforevollu
- 2 de nov.
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E-mail: ailanybrito7@gmail.com
Às vezes, a gente se pergunta o que dói mais: o silêncio de quem sofre ou o silêncio de quem assiste. Eu não moro às margens do Tapajós, mas bastou ler sobre o Fórum de Combate aos Impactos da Contaminação Mercurial que aconteceu no dia 10 de outubro em Santarém/PA, para sentir o gosto amargo que o mercúrio deixa, não só nos peixes, mas na consciência.
Fiquei imaginando o rio, esse velho espelho da Amazônia, agora refletindo a dor dos povos que sempre viveram em harmonia com ele. Penso nas mães Munduruku carregando não apenas seus filhos no ventre, mas também o peso invisível de um metal que envenena gerações. E me pergunto: como o país que se diz defensor da Amazônia pode ser tão cúmplice da sua lenta agonia?
Dados e evidências: o veneno do mercúrio
Os dados apresentados pela Fiocruz no evento são uma ferida aberta: gestantes indígenas com níveis de mercúrio cinco vezes acima do limite considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo o relatório do Ministério Público do Estado do Pará, “as gestantes apresentam, em média, níveis de exposição ao mercúrio cinco vezes superiores ao limite de segurança estabelecido pela OMS” (PORTAL MPPA, 2025). Isso não é uma estatística fria — é o retrato cruel de um genocídio silencioso, mascarado pelo discurso do progresso e do “desenvolvimento econômico”.
O garimpo ilegal é, sem dúvida, o vilão mais visível dessa história, mas como destacou a professora Heloísa Meneses, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), “embora o garimpo ilegal seja a fonte mais conhecida, o problema é mais complexo, envolvendo também desmatamento, queimadas e a instalação de hidrelétricas.
De acordo com a professora Heloísa, “se a gente só resolver o problema do garimpo, a gente não resolve o problema do mercúrio” (PORTAL MPPA, 2025). É um alerta que deveria ecoar nos gabinetes de quem decide o destino da Amazônia.
O sofrimento não pode ser ignorado
E como se já não bastasse a dor científica dos números, há o grito humano que atravessa as paredes frias das instituições. A coordenadora do Conselho do Território Kumaruara, Zenilda Kumaruara, deu rosto e voz a esse sofrimento ao afirmar: “Eu não quero morrer de mercúrio” (PORTAL MPPA, 2025).
Sua frase ecoa como uma sentença coletiva de um povo que, ao defender o rio, luta pela própria sobrevivência. Em sua carta, lida no fórum, denunciou que “a dragagem e o garimpo ilegal vêm destruindo o nosso rio, trazendo consigo o mercúrio que contamina os peixes que alimentam nossas famílias” (PORTAL MPPA, 2025).
Respostas institucionais: avanços insuficientes
O evento, promovido por uma articulação entre o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), buscou firmar um Termo de Compromisso com os gestores públicos da região.
De acordo com a procuradora da República Thaís Medeiros, o documento representa um compromisso político para que as instituições reconheçam a grave realidade da contaminação e atuem de forma proativa no combate a esta problemática de saúde pública e ambiental.
Mas ainda que o termo seja um avanço, não é suficiente diante da profundidade da crise. O mercúrio, diferente das promessas políticas, não espera. Ele se acumula nos corpos, nas águas, nas memórias. Quando uma mãe indígena amamenta seu filho contaminado, o crime ambiental deixa de ser um problema técnico e passa a ser uma questão ética e civilizatória.
A contaminação moral do país
O que está em jogo no Tapajós é mais do que a contaminação de um rio: é a contaminação moral de um país que normaliza o sofrimento dos invisíveis. A Amazônia não é apenas um bioma, é um corpo vivo, uma rede de existências interdependentes. Cada gota contaminada denuncia a falência de um modelo de sociedade que sacrifica vidas em nome de cifras.
O mercúrio não escolhe quem atingir: contamina gestantes, crianças, pescadores, animais, plantas — toda a teia de vida que depende do rio. Ao permitir que essa destruição aconteça, o Estado demonstra não apenas ineficiência, mas uma indiferença ética que sustenta a desigualdade histórica e aprofunda a violência contra povos tradicionais.
A contaminação do Tapajós é também um sintoma de um país que perdeu a bússola moral: quando a lógica do lucro supera a defesa da vida, o progresso se transforma em predatório. A invisibilidade social desses povos, historicamente marginalizados, é instrumentalizada para justificar a exploração desenfreada dos recursos naturais.
O rio, que deveria nutrir e proteger, torna-se um canal de envenenamento físico e simbólico, lembrando que o descaso ambiental é, em última instância, uma escolha política e moral. Essa crise não é só ambiental, é civilizatória. Ela coloca diante de nós a urgência de reavaliar os valores que orientam nossas decisões coletivas.
Defender o Tapajós não é apenas proteger a água ou a biodiversidade; é reafirmar o princípio de que vidas humanas — sobretudo as das populações mais vulneráveis — têm valor intrínseco, que o futuro do país não pode ser construído sobre o sangue e o veneno daqueles que a história insiste em invisibilizar.
Esperança e compromisso
O Fórum terminou com a esperança de que “conseguimos plantar a semente que a gente queria” (PORTAL MPPA, 2025), como resumiu Heloísa Meneses. Mas a semente precisa de solo fértil, e esse solo só existe onde há compromisso, fiscalização e consciência ambiental.
Esperança sem ação concreta é como terra seca: a semente pode até germinar, mas não há força suficiente para sustentar o crescimento. O compromisso exige que as autoridades assumam responsabilidades reais, implementando políticas públicas que protejam os rios, fiscalizem os garimpos ilegais e apoiem os povos tradicionais que dependem da água para viver.
A semente também precisa de mobilização social. É o engajamento das comunidades locais, de pesquisadores, ambientalistas e cidadãos conscientes que garante que a palavra dita no Fórum não se perca em gavetas de burocracia. Sem pressão social, sem visibilidade, sem articulação coletiva, mesmo as melhores intenções correm o risco de secar antes de florescer.
Por fim, a consciência ambiental é o nutriente indispensável. Reconhecer a interdependência entre vida humana, rios e florestas é perceber que cada ação tem consequências, que o futuro da Amazônia não é uma abstração distante, mas uma responsabilidade coletiva. Somente com essa tríade — compromisso político, fiscalização efetiva e consciência ambiental — a semente plantada poderá crescer, florescer e frutificar, garantindo não apenas a sobrevivência do Tapajós, mas também a reafirmação da justiça social e ambiental que tanto se espera neste país.



















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