A fascinante jornada de Inory Kanamari/Julia Brasil: a primeira cacica do povo Kanamari, entre a vida, a morte e o legado deixado
- contatoinforevollu
- 18 de mar.
- 5 min de leitura
Baseado em fatos reais, a história é contado por Inory/ Adriana, indígena do povo kanamari e neta de Inory Kanamari/ Julia Brasil.

Nos meandros da história do Brasil, entre os ecos de uma guerra mundial, se desenrola uma saga de dor e resistência que atravessa gerações. A chamada "Borracha", entre 1942 e 1945, foi um dos períodos mais cruéis e desumanos da nossa história, e foi nesse cenário de devastação que a minha família se viu marcada. Neste relato, as sombras de um passado de exploração, violência e negação de identidade indígena se entrelaçam com a coragem de uma mulher que nunca desistiu de lutar por justiça e dignidade. Esta é a história da anciã Inory do povo Kanamari, registrada pela FUNAI como Júlia Brasil, a história narrada não é apenas sobre minha avó e seu filho, é a história de toda uma nação indígena que, apesar de tudo, sobreviveu.
A Borracha brasileira, cobiçada pelos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, foi o combustível de um ciclo de exploração insustentável. Soldados da borracha, na maioria nordestinos, foram recrutados pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), para trabalhar nos seringais. A promessa de um novo começo, de melhores condições de vida, era apenas um véu sobre a realidade cruel que os aguardava na floresta. Mas a dureza do trabalho era o menor dos horrores. Os seringais, dominados por coronéis de barranco, se tornaram lugares de tortura e morte. Sem mulheres em seus arredores, os soldados da borracha caçavam mulheres indígenas com a ajuda de cães farejadores, estuprando e matando essas mulheres, muitas vezes exterminando aldeias inteiras. Os homens eram escravizados, subjugados, tratados como mercadoria, forçados a trabalhar nas condições mais desumanas.
Foi nesse ambiente de violência selvagem que minha avó teve seu filho. Ela foi uma das muitas mulheres indígenas capturadas e abusadas por esses "coronéis de barranco". Na aldeia Kanamari, ao dar à luz a um filho, a tragédia de sua vida se intensificou: sua aldeia foi invadida, e os homens armados a forçaram a entregar o recém-nascido. A dor de perder seu filho nos braços foi insuportável. Minha avó nunca superou o trauma de vê-lo arrancado de seus braços. Mesmo sem falar português, sem entender as palavras do "inimigo", ela fez do impossível sua missão: encontrá-lo. Seguia, ano após ano, até que soube que ele havia sido levado para Manaus.
A sina do filho de minha avó foi marcada pela dor e pela negação de sua origem. Criado com a vergonha de ser filho de uma indígena, ele foi abusado, maltratado, e, em busca de um pouco de liberdade, vagou pelas ruas de Manaus, morrendo aos poucos, sem perspectivas e sem rumo. Sem educação, sem esperança, com apenas a quarta série do ensino fundamental, foi enviado ao seringal Aracu, perto das aldeias Kanamari (município de Itamarati-AM). A cruel realidade o aguardava, mas ali, ao menos, ele se encontrou com a história que lhe pertencia. E, por isso, a luta começou.
Após 20 anos, minha avó soube que seu filho havia retornado. Porém, o reencontro foi doloroso. Ele a rejeitou, não aceitava ser filho de uma mulher indígena. Mas a força de minha avó nunca se abalou. Com paciência e resiliência, ela não desistiu de conquistar o amor e o respeito do filho que um dia havia perdido. A história deles, marcada pela rejeição e pelo perdão, é um reflexo de uma luta que parecia nunca acabar, mas que, finalmente, encontrou a redenção. Ambos se perdoaram, não pela culpa de um, mas pela crueldade de uma vida que foi imposta a eles, sem sua permissão.

O filho de minha avó, registrado pelos não indígenas como Araripe Brasil Leite, atendeu ao chamado de Tamakori, o deus do povo Kanamari, e se reaproximou de sua terra e sua gente. Com a educação que conseguiu, ele se tornou um líder, lutando pelos direitos não só dos Kanamaris, mas de todos os povos indígenas ao longo do Rio Juruá. Sua luta o levou a se tornar o primeiro vereador indígena do município de Itamarati, interior do Amazonas, mas o caminho não foi fácil. Ele enfrentou detenção, violência e uma luta diária pela sobrevivência em um sistema que o via como inferior. Mas sua resistência era maior que as dores e as ameaças. Sua vida foi marcada por uma luta incansável por justiça, pela terra e pela dignidade de seu povo.
A história de Araripe Brasil Leite e minha avó é a história de uma resistência que nunca se curvou. Uma história de lutas e vitórias, mas também de dor imensa, de traumas que atravessaram gerações. A morte de Araripe, de forma suspeita, em 2022, no município de Itamarati, foi um golpe cruel, mas a memória de sua luta permanece viva. Minha avó Inory, com seu conhecimento ancestral, agora segue curando ao lado de Tamakori (Deus do povo Kanamari), no dia 19 de janeiro de 2025, a maior Xamã do povo kanamari, nos deixou de forma súbita. Sua partida sobretudo para o Clã das Formigas, é irreparável. Contudo, nos deixou sua sabedoria ancestral como herança de nosso povo, apesar da violência.
Sua história é um grito. Um grito que atravessa os tempos e que, ao ser ouvido, exige que se faça justiça. Não só para eles, mas para todos os povos indígenas que, como minha avó e seu filho, enfrentaram a crueldade da história e resistiram com o que mais tinham: a alma, a força e a vontade de sobreviver. Porque, por mais que o destino tenha sido cruel, a resistência se perpetuará, sempre.
Bapo ikoni. Até a próxima pauta.
Referencia:
https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2023/07/relatorio-violencia-povos-indigenas-2022-cimi.pdf. Acesso em 19.12.2024;
AMANTE, Vandreza. 13 mulheres indígenas falam sobre as violências que enfrentam em seus territórios. Portal Catarinas – Reportagem (Território), 2021. Disponível em: https://catarinas.info/21diasdeativismo-a-luta-das-mulheres-indigenas-pelo-pais/. Acesso em 19.12.2024;
https://jornal.usp.br/ciencias/na-amazonia-mobilizacao-de-mulheres-indigenas-contra-violencia-se-estende-a-acoes-para-enfrentar-pandemia/ Acesso EM 19.12.2024.

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