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BR-319: A Rodovia do Futuro ou o caminho do retrocesso

Imagem: Arguivo.Net
Imagem: Arguivo.Net

 

Ka tücüna naina. Saudações, leitor(a).


Como bem nos ensina a sabedoria kanamari, essa simples frase carrega consigo uma verdade que, todos no Brasil deveriam ouvir. E, assim, com a mesma simplicidade, convido você a refletir sobre um dos maiores e mais urgentes desafios enfrentados pelos povos indígenas: a pavimentação da BR-319.


A BR-319 não é só uma rodovia – para nós, povos originários, ela é um ataque direto e violento aos nossos direitos. Uma ameaça que atravessa 63 terras indígenas e que, como um presente para os interesses do agronegócio e dos grileiros, se torna um cenário de destruição em larga escala. E, claro, a decisão que autorizou esse avanço foi tomada sem qualquer consideração pelos impactos profundos que causará.

Como advogada com experiência em temas relacionados aos direitos indígenas, é impossível não perceber a hipocrisia que permeia as decisões que envolvem as populações originárias no Brasil. O país, que assina convenções internacionais com grande pompa e formalidade, ignora de maneira sistemática os compromissos assumidos, especialmente no que tange à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa convenção não é apenas um documento qualquer, mas um princípio fundamental de direitos humanos, que coloca a consulta prévia, livre e informada como uma pedra angular para a proteção dos povos indígenas.


A Convenção 169, que o Brasil ratificou, estabelece o direito desses povos serem consultados sempre que medidas que possam afetá-los diretamente estejam em jogo – e isso não é uma mera formalidade, mas um direito autônomo e irrestrito. Esse direito à consulta prévia não é limitado a projetos de infraestrutura ou empreendimentos específicos, mas se aplica a qualquer ação governamental que impacte as comunidades indígenas, seja em termos de mineração, hidrelétricas, ou até mesmo políticas ambientais. O princípio da autodeterminação, que sustenta essa consulta, visa reparar um histórico de abusos, que incluem genocídio, etnocídio e ecocídio, ao mesmo tempo que busca garantir que os povos indígenas possam exercer o controle sobre seus territórios e modos de vida.


BR - 319 RASGANDO A FLORESTA - Imagem: Folha/Uol
BR - 319 RASGANDO A FLORESTA - Imagem: Folha/Uol

Entretanto, na prática, a adesão do Brasil à Convenção 169 da OIT tem sido, no mínimo, inócua. O que se observa é que a implementação real desse direito está longe de ocorrer, sendo reduzida a um mero adorno nos discursos oficiais, uma peça de fachada que pouco significa no contexto das decisões jurídicas e políticas. Da mesma forma, a adesão à Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, que deveria ser um marco para garantir a proteção e a promoção da dignidade dos povos originários, serve apenas para embelezar o discurso internacional, sem gerar qualquer efeito prático no país.


E o que dizer da Corte Interamericana de Direitos Humanos? Um órgão que, teoricamente, tem a missão de assegurar a proteção dos direitos humanos, mas que, na prática, se vê impotente diante da flagrante violação dos direitos indígenas no Brasil. As suas decisões, que deveriam ser vinculantes, muitas vezes são desconsideradas com um cinismo alarmante, como se fossem meros detalhes em um enredo de ficção, sem qualquer consequência real.


O que se percebe na prática é que os tratados internacionais que o Brasil ratifica são desconsiderados, ignorados ou apenas manipulados para servir aos interesses econômicos que de fato controlam o país. O desenvolvimento é frequentemente colocado como prioridade, mas esse "desenvolvimento" não é de interesse das populações indígenas, que são sistematicamente marginalizadas e cujos direitos fundamentais são descartados em nome de projetos que visam atender ao agronegócio, à mineração e a outras indústrias predatórias.

Como advogada atuante na defesa dos direitos indígenas, é impossível não sentir uma profunda indignação ao observar a continuidade desse ciclo de desrespeito, que se perpetua por meio de convenções não cumpridas e de decisões judiciais que não protegem, mas reforçam a desigualdade e a injustiça. E o mais triste é que, em meio a esse cenário, a verdadeira justiça parece ser um sonho distante, sobretudo para os que mais precisam dela.


E a BR-319, qual é o seu papel nesse grande teatro de enganos? Parece que sua verdadeira função não é conectar regiões ou facilitar o transporte, mas sim abrir caminho para a expansão descontrolada da destruição ambiental. O que, sem surpresa, sempre vai ao encontro dos interesses dos grileiros, ruralistas e invasores. Enquanto isso, as leis que deveriam proteger os povos indígenas e o meio ambiente são facilmente deixadas de lado, como se não passassem de um detalhe irrelevante.


E, para aqueles que ainda duvidam dos reais interesses por trás dessa rodovia, vale a reflexão: o que a BR-319 tem em comum com o Marco Temporal? A resposta, infelizmente, é simples e dolorosa: ambos representam a mesma negação dos direitos dos povos originários. Um caminho aberto para mais invasões, mais destruição e mais violação dos nossos territórios. Se ao menos houvesse a disposição de considerar alternativas menos devastadoras, como uma ferrovia... mas, claro, isso seria pedir demais. Afinal, para que buscar soluções inteligentes quando podemos continuar agradando aos que só pensam em lucros, desmatamento e especulação fundiária?


Aqui estamos, no Brasil – um país onde a economia sempre tem mais privilégios do que os direitos fundamentais. O direito a um meio ambiente equilibrado e sustentável? Um detalhe insignificante quando comparado ao "desenvolvimento" sem fim. "É melhor prevenir do que remediar"? A frase nunca foi tão irônica quanto neste contexto. O que esperar de um país que prefere lidar com os danos após causá-los, ao invés de prevenir os desastres antes que se tornem irreversíveis?


Vivemos uma era de absurdos em que os direitos indígenas e a preservação ambiental são descartados com a mesma facilidade com que se apaga uma vela. A "preocupação" com o meio ambiente e com os povos originários é apenas um discurso vazio que se dissolve diante da força do agronegócio. A famosa frase "é melhor prevenir do que remediar" se tornou uma piada amarga, pois, para este Brasil, o remédio vem sempre tarde – quando já não há mais nada a salvar.


E, em meio a tudo isso, não podemos deixar de reconhecer a hipocrisia nas decisões tomadas. Um verdadeiro desrespeito e indiferença, onde os direitos dos povos indígenas são desmantelados sob o disfarce do progresso. A cada nova estrada, a cada nova invasão, a cada nova morte de lideranças indígenas, o Brasil se distancia mais daquilo que realmente significa justiça. O genocídio ambiental, disfarçado de desenvolvimento, segue ocorrendo.


Portanto, o que deveria ser uma mudança histórica na relação do Brasil com seus povos originários, através da adesão a instrumentos como a Convenção 169 da OIT, se transforma em uma formalidade vazia, em um discurso bonito que não tem respaldo na realidade. O direito à consulta prévia, a autodeterminação e a proteção das terras indígenas continuam sendo desrespeitados, e a promessa de justiça social, de reparação histórica e de reconhecimento da importância dos povos indígenas é apenas uma narrativa que não encontra eco nas ações concretas do Estado.

Bapo ikoni.


Até a próxima pauta.


*Inory Kanamari - Primeira advogada indígena do povo kanamari. Atuou como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM de 2022 a 2024, Vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA (Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia). Escreve como colaboradora toda terça-feira e aos sábados para o Portal Info.Revolução.
*Inory Kanamari - Primeira advogada indígena do povo kanamari. Atuou como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM de 2022 a 2024, Vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA (Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia). Escreve como colaboradora toda terça-feira e aos sábados para o Portal Info.Revolução.

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