Corpos controlados, vidas em risco: análise da política de acesso à saúde feminina na Turquia.
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Atualizado: há 13 minutos

Resumo
A restrição turca que nega acesso a consultas ginecológicas a mulheres solteiras menores de 25 anos, a menos que grávidas, representa um caso emblemático de controle patriarcal e violação de direitos. À luz de Simone de Beauvoir, a medida define a mulher por sua função reprodutiva, relegando-a ao papel de "Outro" e cerceando sua autonomia. Betty Friedan nos ajuda a entender como essa política impõe uma "mística feminina" que negligencia a saúde integral da mulher, criando um "problema sem nome" de desassistência e sofrimento. A política é um claro exemplo de como o patriarcado opera como um sistema de controle de massas, disciplinando corpos femininos e reforçando hierarquias de gênero através da negação de serviços essenciais. Crucialmente, a medida se alinha à necropolítica de Achille Mbembe. Ao condicionar o acesso à saúde à gravidez, o Estado turco expõe intencionalmente essas jovens mulheres a riscos de doenças não diagnosticadas e tratadas, configurando uma forma de "deixar morrer". Essa precarização da vida, que pode levar à morte lenta e silenciosa por negligência, revela quais corpos são considerados dispensáveis em uma ordem estatal patriarcal. A situação é um alerta global sobre a persistência de estruturas que violam o direito à saúde, a autonomia corporal e a dignidade, reiterando a urgência da luta feminista contra todas as formas de opressão.
Palavras-chave: Patriarcado, Necropolítica, Feminismo, Saúde da Mulher, Direitos Reprodutivos.
Introdução
Com a proliferação de regimes e políticas que reconfiguram as relações de poder e os corpos, a saúde da mulher emerge como um campo de batalha onde disputas políticas e sociais se manifestam de forma contundente. A recente medida implementada na Turquia, que impõe restrições ao acesso de mulheres solteiras menores de 25 anos a consultas ginecológicas pelo sistema público de saúde, a menos que estejam grávidas, é um exemplo perturbador dessa dinâmica. Tal restrição não se limita a uma mera política de saúde; ela é um sintoma complexo de estruturas patriarcais que buscam controlar a sexualidade e a autonomia feminina, ecoando debates cruciais no campo dos estudos de gênero e dos direitos humanos.
Este artigo propõe uma análise aprofundada dessa medida à luz de teorias feministas e pós-coloniais, explorando como ela se insere em um contexto mais amplo de controle social e poder sobre a vida e a morte. Inicialmente é examinado as contribuições de pensadoras como Simone de Beauvoir e Betty Friedan, cujas obras desnaturalizaram os papéis de gênero e expuseram as formas de opressão que confinam as mulheres a esferas domésticas e reprodutivas.
Em seguida, se aprofunda na compreensão do patriarcado como um sistema de controle de massas, conforme teorizado por Heleieth Saffioti, revelando como a medida turca se manifesta na disciplina dos corpos femininos, na perpetuação de ideologias machistas e na violação de direitos fundamentais. Finalmente, aplica-se o conceito de necropolítica de Achille Mbembe para desvelar as implicações mais sombrias dessa restrição, argumentando que a negação de acesso à saúde preventiva constitui uma forma de exposição calculada à doença e à morte, delineando quais vidas são consideradas "matáveis" ou menos dignas de proteção em uma ordem estatal patriarcal.
Ao entrelaçar essas perspectivas teóricas, buscou-se oferecer uma compreensão multifacetada das ramificações dessa política, evidenciando seu impacto na saúde, na autonomia e na própria existência das jovens mulheres na Turquia e as lições que podem ser extraídas para a luta global por justiça de gênero.

2. Controle de corpos
A segunda onda do feminismo, que emergiu em meados do século XX, especialmente a partir da década de 1960, representou um divisor de águas na luta pelos direitos das mulheres. Diferente da primeira onda, focada majoritariamente no sufrágio feminino e nos direitos civis básicos, a segunda onda aprofundou-se nas questões de desigualdade sistêmica, buscando transformar as estruturas sociais que perpetuavam a opressão feminina em diversas esferas, incluindo a sexualidade, a família, o trabalho e, crucialmente, os direitos reprodutivos.
Embora sua obra seminal, "O Segundo Sexo", tenha sido publicada em 1949, antes do auge da segunda onda, as ideias de Beauvoir (2020) foram a base filosófica e teórica que alimentou grande parte do pensamento feminista subsequente. Beauvoir (2020) desafiou a noção de um "destino feminino" biológico, argumentando que "não se nasce mulher, torna-se mulher". Essa afirmação revolucionária desnaturalizou os papéis de gênero, mostrando que as expectativas e limitações impostas às mulheres são construções sociais e culturais, e não inerentes à sua biologia.
Para Beauvoir (2020), a mulher era definida como o "Outro" em relação ao homem, que representava o "Um" ou o sujeito universal. Essa alteridade imposta resultava na subordinação feminina e na negação de sua liberdade e autonomia. A maternidade e a vida doméstica, embora vistas como a "essência" feminina, eram para Beauvoir formas de aprisionamento que impediam a mulher de transcender e realizar-se plenamente como um ser humano livre.
A contribuição de Beauvoir (2020) para os direitos reprodutivos e produtivos reside na sua profunda crítica à forma como a sociedade patriarcal utiliza a capacidade reprodutiva da mulher para confiná-la ao espaço privado e limitar sua participação no mundo público (produtivo). Ao desmistificar a feminilidade como uma construção, ela abriu caminho para questionar a imposição da maternidade e a falta de controle das mulheres sobre seus próprios corpos. Se a mulher não nasce predestinada a ser mãe e esposa, então ela deve ter o direito de escolher se e quando quer ter filhos, e de participar plenamente da vida econômica e social.
Friedan (2021) deu voz à insatisfação de milhares de mulheres americanas de classe média que, apesar de aparentemente terem "tudo" – marido, filhos, casa –, sentiam um profundo vazio e uma sensação de aprisionamento. Friedan (2021) cunhou o termo "mística feminina" para descrever a ideologia dominante que promovia a ideia de que a realização da mulher se dava exclusivamente através do casamento, da maternidade e da dedicação total ao lar. Essa mística, segundo ela, impedia as mulheres de buscar educação, carreira e outras formas de autodesenvolvimento, levando a um profundo "problema sem nome".
O trabalho de Friedan (2021) foi crucial para os direitos reprodutivos porque ele explicitou como a falta de controle sobre a vida reprodutiva e as expectativas sociais em torno da maternidade eram centrais para a opressão das mulheres. A "mística feminina" não apenas glorificava a maternidade compulsória, mas também estigmatizava a mulher que ousava questionar esse papel, dificultando o acesso a informações sobre contracepção e aborto, e limitando sua autonomia sobre o próprio corpo.
Para os direitos produtivos, Friedan (2021) destacou a necessidade das mulheres de participarem do mercado de trabalho não apenas por necessidade econômica, mas como uma forma de realização pessoal e de quebrar a dependência masculina. Ela criticou a discriminação no emprego, a segregação ocupacional e a falta de oportunidades para as mulheres fora do lar. Sua obra foi um catalisador para a formação de organizações como a National Organization for Women (NOW), que lutou por igualdade de oportunidades no trabalho, salários justos e o fim da discriminação de gênero.
A influência de Beauvoir (2020) e Friedan (2021), aliada à efervescência de movimentos sociais como o de direitos civis, impulsionou a segunda onda do feminismo a focar em conquistas concretas para os direitos reprodutivos e Reprodutivos; O acesso à contracepção, a pílula anticoncepcional, embora lançada antes da segunda onda, teve sua disseminação e aceitação social impulsionadas pela demanda feminista por controle sobre a natalidade. As feministas lutaram para que a contracepção fosse amplamente disponível, acessível e vista como um direito fundamental das mulheres.
A segunda onda expandiu o conceito de saúde da mulher para além da maternidade, incluindo o acesso a exames ginecológicos preventivos, informações sobre doenças sexualmente transmissíveis e educação sexual.
As feministas da segunda onda pressionaram por leis antidiscriminação no emprego, como o Título VII da Lei de Direitos Civis de 1964 nos EUA, que proibia a discriminação de gênero. A luta por remuneração equitativa foi uma prioridade, combatendo a disparidade salarial entre homens e mulheres. Houve um movimento para que as mulheres tivessem acesso a carreiras antes dominadas por homens, rompendo barreiras de gênero e promovendo a diversificação do mercado de trabalho.
A segunda onda começou a nomear e combater o assédio sexual como uma forma de discriminação e opressão no ambiente de trabalho. Reconhecendo a dupla jornada das mulheres, as feministas defenderam políticas de licença maternidade e a criação de creches e centros de cuidados infantis para permitir que as mulheres pudessem conciliar a vida profissional com a familiar.
A segunda onda do feminismo, profundamente influenciada pelas análises de Beauvoir (2020) sobre a construção social do gênero e pela denúncia de Friedan (2021) sobre a "mística feminina", foi um período de intensa mobilização que resultou em conquistas significativas para os direitos reprodutivos e produtivos das mulheres. Ao questionar as normas sociais que confinavam as mulheres ao lar e negavam seu controle sobre o próprio corpo, o movimento abriu caminho para uma maior autonomia individual e para uma participação mais equitativa na sociedade.
Embora a luta por plena igualdade continue, os avanços da segunda onda estabeleceram as bases para a compreensão contemporânea dos direitos das mulheres como direitos humanos inalienáveis e indispensáveis para uma sociedade justa e democrática.

3. O Corpo como Controle de massa
O patriarcado, como sistema de dominação masculina estrutural e culturalmente arraigado, tem sido um objeto central de análise para diversas teóricas feministas, e entre elas, a socióloga brasileira Saffioti (2017) se destaca. Saffioti, com sua obra seminal, ofereceu uma compreensão profunda da intersecção entre o patriarcado, o capitalismo e a violência de gênero, delineando como esse sistema se manifesta não apenas no nível interpessoal, mas também como um mecanismo de controle de massas, atuando na moldagem de comportamentos, valores e na manutenção de hierarquias sociais.
Para Saffioti (2017), o patriarcado não é meramente a dominação do homem sobre a mulher, mas uma estrutura complexa e multifacetada que se manifesta em todas as esferas da vida social. Ele se perpetua através de instituições, normas, discursos e práticas que naturalizam a superioridade masculina e a subordinação feminina. Em sua obra "O Poder do Macho", por exemplo, Saffioti (1987) explora como o machismo é uma ideologia que perpassa as relações sociais, de trabalho, políticas e familiares, justificando a autoridade masculina e a subalternidade feminina. Essa ideologia não se restringe ao âmbito privado; ela se expande para o público, influenciando políticas, leis e a própria construção do conhecimento.
No que tange ao controle de massas, o patriarcado opera de diversas formas, sendo um poderoso instrumento para a manutenção da ordem social e para a reprodução das desigualdades. Uma das maneiras mais evidentes desse controle é através da disciplinarização dos corpos femininos e masculinos. O patriarcado impõe padrões rígidos de masculinidade e feminilidade, ditando como homens e mulheres devem se portar, sentir e interagir (Saffioti, 2017).
Para as mulheres, isso se traduz em expectativas de docilidade, cuidado, beleza padronizada e, sobretudo, em um forte controle sobre sua sexualidade e capacidade reprodutiva. A criminalização do aborto, a estigmatização da sexualidade feminina não-reprodutiva e a glorificação da maternidade compulsória são exemplos claros de como o patriarcado atua para moldar e constranger as escolhas e a autonomia das mulheres em larga escala. Esse controle sobre a sexualidade feminina é um pilar da dominação patriarcal, pois ao controlar a reprodução, controla-se a força de trabalho e a própria linhagem familiar, elementos cruciais para a manutenção do poder.
Outro aspecto do controle de massas patriarcal, segundo Saffioti (1987), reside na divisão sexual do trabalho. O patriarcado aloca às mulheres o trabalho reprodutivo e de cuidado não-remunerado, confinando-as majoritariamente à esfera doméstica e desvalorizando seu trabalho no espaço público. Mesmo quando as mulheres ingressam no mercado de trabalho formal, elas são frequentemente segregadas para profissões menos valorizadas e remuneradas, perpetuando a dependência econômica em relação aos homens. Essa divisão não é natural, mas uma construção social que beneficia o capital e o poder masculino, liberando os homens para o trabalho produtivo e reforçando a ideologia de que o "lugar da mulher é em casa". A universalização dessa norma social e econômica é um exemplo robusto de controle de massas, pois direciona a vida de milhões de indivíduos de acordo com um esquema patriarcal.
O patriarcado exerce controle através da violência de gênero. Saffioti (2017) dedicou grande parte de sua pesquisa à análise da violência doméstica e sexual, mostrando que ela não é um fenômeno individual ou patológico, mas uma ferramenta de controle social. A violência patriarcal, em suas múltiplas formas (física, psicológica, sexual, patrimonial), serve para manter as mulheres em seus "devidos lugares", punindo qualquer desvio das normas de gênero. A impunidade de agressores e a culpabilização das vítimas, muitas vezes reforçadas por um sistema jurídico e social patriarcal, enviam uma mensagem clara às massas: o poder masculino deve ser respeitado e a subordinação feminina é esperada. A presença generalizada da violência, e a naturalização de seus mecanismos, atua como um desincentivo à autonomia e à rebelião feminina.
A pedagogia social e cultural é um instrumento sutil, mas poderoso, de controle de massas patriarcal. Desde a infância, homens e mulheres são socializados em papéis de gênero específicos, através de brincadeiras, livros, mídia e expectativas familiares. A mídia, em particular, desempenha um papel crucial na reprodução de estereótipos de gênero, reforçando a imagem da mulher como objeto de consumo ou como cuidadora abnegada, e a do homem como provedor e dominador. Essa contínua exposição a narrativas e imagens patriarcais molda o imaginário coletivo, dificultando o reconhecimento da opressão e a construção de alternativas. A internalização desses valores patriarcais, por homens e mulheres, perpetua o sistema de forma aparentemente consensual.
Para Saffioti (1987), o patriarcado transcende a esfera individual, atuando como um sistema complexo de controle de massas. Ele se manifesta na disciplina dos corpos e da sexualidade, na divisão sexual do trabalho, na instrumentalização da violência de gênero e na pedagogia social. A desnaturalização dessas estruturas e a luta por sua superação, conforme defendido por Saffioti, exigem uma análise crítica profunda e uma ação coletiva que desmonte os mecanismos de dominação patriarcal em todos os níveis da sociedade.

4. A necropolítica de Achille Mbembe
A recente notícia vinda da Turquia, que impede mulheres solteiras com menos de 25 anos de acessarem consultas ginecológicas pelo sistema público de saúde, a menos que estejam grávidas, é um exemplo contundente da aplicação de mecanismos de controle patriarcal e da violação de direitos fundamentais das mulheres, conforme as teorias de gênero e as discussões feministas. A medida não é um ato isolado, mas uma manifestação de um sistema que busca disciplinar e limitar a autonomia feminina, ecoando as análises de Beauvoir (2020), Friedan (2021) e Saffioti (1987;2017).
Primeiramente, a restrição turca se alinha perfeitamente à visão de Saffioti (1987) sobre o patriarcado como um sistema de controle de massas. Ao impor uma barreira ao acesso à saúde ginecológica para mulheres jovens e solteiras, o Estado turco, imbuído de uma lógica patriarcal, está exercendo um controle direto sobre a sexualidade e a capacidade reprodutiva feminina. Essa medida envia uma mensagem clara: o corpo da mulher jovem e solteira só tem relevância para o sistema público de saúde quando diretamente ligado à reprodução dentro de um contexto específico – a gravidez.
Fora desse cenário, sua saúde ginecológica parece ser desconsiderada ou despriorizada. Isso reflete a disciplina dos corpos femininos mencionada por Saffioti (1987), onde a sociedade patriarcal dita como as mulheres devem se portar e quando seus corpos são dignos de atenção. A imposição dessa regra contribui para a naturalização da ideia de que a mulher é primeiramente um ser reprodutor, e só então um indivíduo com direitos à saúde integral.
Essa situação também ressoa com a crítica de Beauvoir (2020) sobre a mulher ser construída como o "Outro". A medida turca essencialmente define essas jovens mulheres solteiras não por sua individualidade, mas por sua relação potencial com a gravidez (ou a ausência dela). A ausência de gravidez as coloca em uma categoria de "não-utilidade" para o sistema naquele momento, reforçando a ideia de que a mulher só adquire visibilidade ou importância através de sua função reprodutiva.
Beauvoir (2020) argumentaria que, ao negar o acesso preventivo à saúde ginecológica, a Turquia está limitando a capacidade dessas mulheres de transcenderem, de se realizarem plenamente como sujeitos autônomos. A saúde ginecológica não é apenas sobre gravidez; é sobre prevenção de doenças, planejamento familiar (mesmo que não reprodutivo), educação sexual e bem-estar geral. Ao restringir isso, a medida aprisiona essas mulheres a uma definição estreita de sua existência, condicionada à sua potencial maternidade.
Friedan (2021) também encontra paralelos perturbadores nessa situação. Embora a realidade turca tenha suas especificidades culturais e religiosas, a medida ecoa a pressão para que as mulheres se conformem a um ideal que as relega à esfera privada e reprodutiva. A restrição implica que a sexualidade da mulher jovem e solteira, se não direcionada à reprodução (ou já concretizada nela), é algo a ser ignorado ou até mesmo punido pela falta de acesso a cuidados essenciais.
Isso pode levar a um "problema sem nome" para muitas dessas jovens, que se verão desassistidas, com problemas de saúde que podem se agravar, e com uma sensação de desamparo e invisibilidade por parte do Estado. A falta de acesso à saúde ginecológica preventiva pode ter impactos devastadores na saúde física e mental dessas mulheres, gerando ansiedade, estigma e, em última instância, limitando sua capacidade de participar plenamente da vida pública e produtiva (Frienda, 2021).

Do ponto de vista dos direitos reprodutivos e produtivos, essa medida é uma flagrante violação. O direito à saúde é um direito humano fundamental, e o acesso a cuidados ginecológicos é parte integrante do direito à saúde sexual e reprodutiva. Ao vincular o acesso à gravidez e ao estado civil, a Turquia está praticando uma discriminação de gênero e idade, o que é inaceitável sob a ótica dos direitos humanos. Essa restrição não só compromete a saúde das jovens, mas também limita sua autonomia sobre o próprio corpo e sua vida reprodutiva, negando-lhes a capacidade de planejar, prevenir doenças e tomar decisões informadas sobre sua sexualidade. Ao comprometer sua saúde e bem-estar, indiretamente, a medida pode impactar sua capacidade de estudo, trabalho e participação social, violando também seus direitos produtivos (SAPO24, 2025).
A decisão turca é um triste exemplo de como o patriarcado, conforme analisado por Saffioti, atua para controlar massas através da disciplina dos corpos e da sexualidade. Ela reflete a visão de Beauvoir (2020) da mulher como "Outro", cuja existência só é validada por sua função reprodutiva. E, ao cercear o acesso à saúde essencial, cria um "problema sem nome" que Friedan (2021) tão bem descreveu, gerando sofrimento e limitando as possibilidades de vida de milhares de jovens.
A notícia não é apenas um fato local, mas um lembrete global da persistência das estruturas patriarcais e da necessidade contínua da luta feminista por direitos reprodutivos e autonomia corporal como pilares de uma sociedade justa.
A medida turca que restringe o acesso de mulheres solteiras menores de 25 anos a consultas ginecológicas, a menos que estejam grávidas, adquire uma dimensão ainda mais sombria quando analisada sob a lente da necropolítica de Mbembe (2018). Para Mbembe, a necropolítica refere-se ao poder do Estado (ou de outras entidades soberanas) de ditar quem pode viver e quem deve morrer, ou, em outras palavras, de exercer controle sobre a vida e a morte, definindo quais corpos são descartáveis e quais são dignos de proteção. Ao negar o acesso preventivo à saúde ginecológica, a medida turca não apenas discrimina, mas também exerce uma forma insidiosa de necropolítica sobre as jovens mulheres.
A ginecologia não se resume ao acompanhamento da gravidez; ela engloba a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), a detecção precoce de câncer de colo de útero, câncer de ovário e mama, o tratamento de infecções, a discussão sobre planejamento familiar e contracepção, e o acompanhamento de diversas condições que afetam a saúde feminina. Ao negar o acesso a esses serviços, o Estado turco está, de fato, colocando em risco a vida e a saúde dessas mulheres.
A aplicação da necropolítica aqui se manifesta na produção de "vidas matáveis" ou "vidas negligenciáveis". No regime necropolítico, certos grupos são expostos à morte, seja por violência direta ou por meio da negação de condições essenciais para a vida. Ao impedir que mulheres solteiras jovens acessem exames preventivos, o Estado as deixa vulneráveis a doenças que poderiam ser diagnosticadas e tratadas precocemente. Se uma jovem desenvolver uma infecção grave, um câncer em estágio inicial ou outras complicações ginecológicas, a falta de acesso a um ginecologista significará que a condição pode progredir sem ser detectada. O resultado pode ser a necessidade de tratamentos mais invasivos, a perda de fertilidade, dor crônica e, em casos extremos, a morte (Mbembe, 2018).
Essa negação de acesso é uma forma de exposição calculada à morte e à doença. O Estado, ao definir que essas mulheres não merecem cuidados preventivos a menos que estejam grávidas, implicitamente as categoriza como menos dignas de proteção de vida. Suas vidas não estão sendo ativamente tiradas, mas as condições para a sua manutenção são retiradas, criando um ambiente onde a doença e a morte se tornam resultados mais prováveis. É um exercício de soberania que não se manifesta na morte imediata, mas na precarização da vida que pode levar à morte lenta e silenciosa através da doença. A decisão de "deixar morrer" através da negligência de serviços essenciais é uma característica central da necropolítica (Mbembe, 2018).
Além disso, a medida reforça a disciplina e o controle sobre os corpos femininos que Saffioti (1987) e Beauvoir (2020) já discutiam, mas leva essa disciplina a um nível letal. A soberania necropolítica atua ao prescrever o valor da vida com base em normas sociais e morais. Ao vincular o acesso à ginecologia à gravidez, o Estado turco está afirmando que a vida e a saúde sexual e reprodutiva de uma mulher jovem e solteira só têm valor se estiverem alinhadas com um ideal de maternidade dentro de um contexto presumivelmente matrimonial.
Aquelas que não se encaixam nesse molde são negadas o direito à prevenção, tornando-se corpos que podem ser sacrificados em nome de uma ordem moral e social patriarcal. Se essas mulheres adoecerem e morrerem por falta de acesso, suas mortes não serão vistas como tragédias, mas como consequências de uma suposta "irresponsabilidade" ou desvio das normas, ou simplesmente serão invisibilizadas pela ausência de um sistema que as proteja.

A necropolítica, neste caso, não se manifesta apenas na permissão para que doenças progridam, mas também na produção de medo e vulnerabilidade. O conhecimento de que o acesso à saúde é negado pode levar essas mulheres a esconder problemas de saúde, a buscar soluções clandestinas e arriscadas, ou a simplesmente viver com condições debilitantes, aumentando seu sofrimento e a probabilidade de um desfecho fatal. Isso gera uma espécie de "zona de morte social" para esse grupo, onde sua vitalidade é continuamente ameaçada pela política estatal (Mbembe, 2018).
A restrição ao acesso ginecológico na Turquia, ao negar cuidados preventivos a mulheres jovens e solteiras, transcende a mera discriminação ou controle social; ela se configura como uma manifestação da necropolítica. Ao expor essas mulheres a um risco aumentado de adoecimento e morte por negligência, o Estado turco exerce seu poder soberano para decidir quais vidas valem a pena ser protegidas e quais podem ser sacrificialmente abandonadas em nome de uma ordem patriarcal e de um controle sobre a sexualidade e a reprodução.
5. Considerações Finais
A análise da restrição imposta às mulheres solteiras menores de 25 anos na Turquia, impedindo seu acesso a consultas ginecológicas preventivas pelo sistema público de saúde, revela-se um microcosmo das complexas e interconectadas estruturas de poder que operam para controlar a vida e a autonomia das mulheres. Através das lentes das teorias feministas e da necropolítica, demonstramos que essa medida transcende uma simples política de saúde; ela constitui um ato deliberado de controle patriarcal que precariza vidas e viola direitos fundamentais.
Como explorado, as contribuições de Beauvoir (2020) e Friedan (2021) foram essenciais para desnaturalizar os papéis de gênero e expor as amarras da "mística feminina" que confinam as mulheres à esfera reprodutiva. A restrição turca é um eco contemporâneo dessa mística, validando a saúde feminina apenas quando ligada à gravidez e à potencial maternidade, e negando a existência da mulher como sujeito autônomo com necessidades de saúde integrais. A invisibilidade imposta à sexualidade e ao bem-estar dessas jovens fora do escopo reprodutivo é uma reedição da mulher como o "Outro", cuja existência é definida pela sua relação com o homem e com a capacidade de gerar descendentes.
A perspectiva de Saffioti (2017) sobre o patriarcado como um sistema de controle de massas foi crucial para entender como essa medida não é um incidente isolado, mas uma estratégia para disciplinar corpos e comportamentos em larga escala. Ao limitar o acesso a serviços essenciais, o Estado turco envia uma mensagem clara sobre o "lugar" da mulher na sociedade, reforçando hierarquias de gênero e perpetuando a ideia de que o corpo feminino é um território a ser regulado e controlado. A consequente vulnerabilidade à qual essas jovens são expostas é um subproduto direto dessa lógica de dominação.
Finalmente, a aplicação da teoria da necropolítica de Mbembe (2018) revelou a dimensão mais grave dessa restrição. Ao negar o acesso a exames preventivos vitais, que poderiam detectar e tratar precocemente condições como câncer, infecções e outras patologias ginecológicas, a política turca se traduz em uma forma de "deixar morrer". Não se trata de uma violência explícita, mas de uma exposição calculada à doença e à morte, onde a vida dessas mulheres é desvalorizada e considerada descartável caso não se alinhe a um ideal reprodutivo. Essa é a face mais fria do patriarcado: a de um sistema que, em nome de uma ordem social e moral, subtrai as condições para a manutenção da vida de determinados corpos.
Em síntese, a situação na Turquia é um lembrete pungente de que a luta pelos direitos das mulheres está longe de ser concluída. A medida em questão é uma agressão direta à autonomia corporal, ao direito à saúde e à dignidade humana das jovens mulheres. Ela ilustra a persistência e a adaptabilidade dos sistemas patriarcais em moldar políticas públicas que mantêm a subordinação de gênero, mesmo em detrimento da vida.
A resistência a tais políticas exige uma vigilância constante, uma articulação global de movimentos feministas e de direitos humanos, e uma contínua desconstrução das ideologias que permitem que estados exerçam tal poder sobre a vida e a morte de seus cidadãos, especialmente de suas cidadãs. Futuras pesquisas poderiam explorar os impactos longitudinais dessa política na saúde pública turca, as estratégias de enfrentamento das mulheres afetadas e o papel da sociedade civil e das organizações internacionais na pressão por sua reversão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Editora Nova Fronteira, 2020, Edição 5ª, ISBN 978-8520943793.
FRIEDAN, Betty. A mística feminina. 3. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021. 559 p.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. Gênero patriarcado violência. / Heleieth Iara Bongiovani Saffioti.--.ed.—São Paulo : Expressão Popular : Fundação Perseu Abramo, 2015.
SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987.
SAPO24. Turquia: mulheres solteiras com menos de 25 anos não podem marcar consulta de ginecologia. Disponível em: https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/turquia-mulheres-solteiras-com-menos-de-25-anos-nao-podem-ir-a-consulta-de-ginecologia. Acesso em: 08 de junho de 2025.

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