"Cultura ou violência? desmistificando a justificativa da violência contra a mulher como parte da cultura indígena, com Intuito de evitar a aplicação da Lei Maria da Penha"
- contatoinforevollu
- 8 de abr.
- 5 min de leitura

Ka tücüna naina, batih o ankira itohoki niwü nintyo.
A cultura, de acordo com o dicionário português, refere-se a um conjunto de atividades, instituições e padrões sociais relacionados à criação e disseminação das artes e das ciências humanas. Na antropologia jurídica, essa definição é ampliada para incluir a análise das interações entre sociedades e normas jurídicas. Como advogada e indígena, defendo que, para os povos originários, a cultura vai além das definições acadêmicas; ela transcende o que é palpável. A cultura não apenas narra a história de um povo, mas também a preserva.
É crucial reconhecer que a cultura é um fenômeno dinâmico. Desde a chegada dos portugueses, os povos indígenas foram forçados a assimilar elementos de uma cultura imposta. Essa assimilação, no entanto, não foi unilateral; ao longo da história, muitos hábitos foram integrados, como o uso da farinha de mandioca, que hoje é essencial na alimentação de muitos povos, especialmente na Amazônia. Essa troca cultural reflete não apenas resistência, mas também adaptação e sobrevivência.
Cada povo possui sua cultura única, que tem sido transformada por contatos externos ao longo dos séculos. Reconhecer essas mudanças é fundamental, especialmente no contexto jurídico. Historicamente, indígenas foram criminalizados por práticas que, em suas culturas, têm significados distintos dos da sociedade não indígena. O conhecimento das diversas culturas é essencial para a formação crítica dos juristas, ajudando a entender a complexidade social que fundamenta a regulação jurídica, especialmente em relação à Lei Maria da Penha e aos povos indígenas. Isso destaca a urgência de discutir o que constitui cultura e o que é violência.
O sistema de justiça brasileiro frequentemente falha em ser plural e multiétnico, levantando questões sobre a adequação de suas normas à diversidade cultural. A falta de preparo para lidar com essa complexidade resulta em interpretações errôneas do comportamento de indígenas que se integram à sociedade não indígena. Observando de perto, especialmente no Amazonas, que abriga a maior população indígena do país, notamos a escassez de registros de mulheres indígenas vítimas de violência, tanto nas delegacias da capital quanto nas do interior. No entanto, essa ausência de dados não implica que a violência não ocorra.
Recentemente, a Revista Cenarium destacou um caso de violência contra uma mulher da etnia mayuruna. Um indígena que vive integrado à sociedade não indígena justificou a brutalidade que resultou na perda de um olho da mulher, alegando que a violência era uma prática cultural. É importante ressaltar que, à medida que o contato com o ambiente urbano aumenta, os casos de violência se tornam mais frequentes. Essa realidade, observada durante minha atuação como advogada nas aldeias e interiores do Amazonas, me leva a refletir sobre a urgência desse debate.
Reconhecer que cada povo possui suas particularidades, incluindo língua, cultura e história, é fundamental. Antes da invasão em 1500, os povos originários já tinham uma estrutura organizacional interna. A ideia de que a vida nas aldeias era caótica é equivocada. O cacique, líder de uma comunidade indígena, tem o papel de processar e punir aqueles que violam normas internas. Assim como na sociedade não indígena, a questão da punição surge em relação a comportamentos que antes não existiam. Por exemplo, a violência contra mulheres indígenas não era um problema nas aldeias antes do contato com o não indígena.

É imprescindível que o sistema de justiça respeite a cultura indígena e reconheça as punições internas, desde que não infrinjam a vida e a dignidade humana. Ao discutir a Lei Maria da Penha ou qualquer outra norma no contexto indígena, é essencial que as políticas públicas sejam elaboradas com a participação ativa dos povos originários. Caso contrário, essas leis serão meras formalidades sem eficácia prática.
A interação entre legislações não indígenas e as práticas dos povos originários é necessária. A figura do cacique deve ser respeitada como autoridade legítima em questões que ocorrem nas aldeias, de maneira semelhante à competência territorial existente entre Brasil e outros países em relação a crimes cometidos por brasileiros no exterior. Contudo, é crucial que a violência contra a mulher seja reconhecida como crime nas aldeias.
Os legisladores precisam compreender que é desafiador tipificar uma conduta como crime quando essa conduta é nova na realidade atual. Um exemplo claro é a dificuldade que se tinha em definir crimes cibernéticos, crimes que não existiam antes da era da internet. Essa mesma lógica se aplica aos povos originários: como um cacique pode tipificar um crime que nunca existiu nas aldeias e que surgiu apenas devido ao contato forçado com a sociedade não indígena? Essa realidade exige uma reflexão cuidadosa sobre a adequação das leis e a compreensão das dinâmicas culturais envolvidas.
Como mulher, indígena e advogada, sinto a necessidade de alertar as autoridades sobre o aumento dos casos de violência e a importância de um sistema de justiça mais robusto. Esse sistema deve incluir antropólogos, preferencialmente indígenas, e tradutores das diversas línguas maternas nas delegacias e durante todo o processo, garantindo que todas as vozes sejam ouvidas e respeitadas. A cultura não pode ser usada como justificativa para a violência; atos violentos devem ser punidos de acordo com as leis brasileiras, especialmente quando os indígenas vivem mais a cultura do não indígena do que a sua própria.
Os agressores não podem continuar a usar a "cultura" como desculpa para evitar responsabilidades. É inaceitável que alguém que vive integrado à sociedade não indígena alegue que atos de extrema violência contra sua companheira sejam uma prática cultural de seu povo. A Lei Maria da Penha, que estabelece a proteção das mulheres, deve ser aplicada rigorosamente, principalmente para aqueles que vivem em contextos urbanos.

Por fim, o sistema de justiça deve agir proativamente para evitar que mais mulheres indígenas sejam vítimas de violência e percam a vida nas mãos de agressores que utilizam a cultura como desculpa para seus atos criminosos. Para isso, é fundamental estabelecer um diálogo verdadeiro com as comunidades indígenas, permitindo que o sistema de justiça se aproxime e compreenda a realidade dessas populações, superando uma visão superficial. É crucial que as autoridades estejam abertas a entender cada contexto em que vítimas e agressores se encontram, livres de preconceitos. Somente assim poderemos construir um sistema que reconheça e respeite a diversidade cultural, mas que também repudie a violência, entendendo que, entre os povos originários, a violência nunca foi e nunca será uma expressão cultural aceitável.
Bapo ikoni.


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