Educação, trabalho e juventude amazônica: quem lucra com os sonhos interrompidos?
- contatoinforevollu
- 2 de jun
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E-mail: ailanybrito7@gmail.com
Foi durante a elaboração de um trabalho acadêmico que me deparei com uma inquietação que me desconcertou: qual juventude está sendo formada pela escola e para qual tipo de trabalho? Questionamento simples à primeira vista, mas que revela profundas contradições quando olhamos para a realidade da juventude na Amazônia — uma realidade marcada por distâncias geográficas, desigualdades sociais históricas e silenciamentos culturais.
Na região amazônica, juventude, trabalho e educação formam um triângulo desigual. Esse triângulo se sustenta sobre uma base de exclusão, invisibilidade e exploração. A maior parte desses jovens tem seus sonhos interrompidos ainda na adolescência, seja pela evasão escolar, pela entrada precoce no trabalho, ou pela falta de políticas públicas que assegurem permanência e dignidade nos estudos e no território.

Educação na Amazônia: entre o abandono e a resistência
No chão amazônico, estudar é quase sempre um ato de resistência. Em comunidades ribeirinhas, indígenas ou nas periferias das cidades, jovens percorrem longas distâncias até a escola — quando há escola. A precariedade da infraestrutura, a rotatividade de professores, a falta de internet e o currículo descolado da realidade local revelam o abandono histórico da educação na região.
Além disso, o currículo escolar muitas vezes ignora os saberes tradicionais, as línguas indígenas e as práticas comunitárias, reforçando uma lógica colonizadora. A escola que deveria libertar, como sonhava Paulo Freire, acaba muitas vezes aprisionando jovens a uma visão de mundo que não os reconhece.
A escola não é neutra. Ela é, como afirma Althusser (1970), um aparato ideológico do Estado, ou seja, um instrumento de reprodução das ideias dominantes — geralmente das classes dominantes. Nesse sentido, a forma como o currículo é estruturado, quais saberes são valorizados e para quem a escola serve, estão permeados por interesses de classe.
Nas beiras dos rios e nas periferias urbanas da região, o discurso da “educação como oportunidade” não consegue esconder a realidade da exclusão e das desigualdades de classe. À primeira vista, os discursos sobre educação e juventude no Brasil parecem carregados de boas intenções — fala-se em oportunidades, em projetos de vida, em protagonismo juvenil. No entanto, uma análise mais atenta revela uma realidade bem mais complexa, permeada por contradições que escancaram as marcas da desigualdade social.

Jovens ribeirinhos, indígenas, quilombolas e periféricos enfrentam obstáculos históricos que não se resolvem apenas com vontade política ou promessas de campanha. Eles enfrentam, na verdade, uma luta de classes profundamente enraizada na negação do direito ao futuro. Para esses jovens estudar sempre foi um ato de resistência física, econômica e simbólica.
Esse cenário evidencia o que a sociologia crítica já denunciava: a escola como um espaço que, longe de ser neutro, reflete e reproduz as hierarquias sociais e econômicas. No caso amazônico, isso é ainda mais visível. Enquanto projetos educacionais bilíngues e interculturais são prometidos em papel, o que se vê são currículos descontextualizados, centralizados no modelo urbano e sulista, que pouco dialogam com os modos de vida e saberes locais. A juventude amazônida é forçada a estudar sobre realidades distantes, enquanto sua própria história é silenciada.
As políticas públicas para juventude, educação e trabalho também expressam contradições de classe. Algumas políticas têm caráter compensatório e visam amenizar os efeitos das desigualdades (como o ProUni, Pronatec, cotas), mas outras reforçam o controle e a disciplina da juventude pobre. Bourdieu (1983) nos ajuda a entender que os capitais econômico, cultural e social, disponíveis para cada jovem são desigualmente distribuídos, o que impacta suas trajetórias. Assim, políticas públicas intersetoriais que integrem educação, trabalho e cultura são fundamentais para garantir equidade.

Cotas não são favor, são reparação histórica
Uma das expressões mais sutis — e cruéis — da luta de classes no Brasil é a forma como parte da sociedade encara as políticas de cotas raciais e sociais. Há quem ainda repita, com arrogância e desinformação, que as cotas seriam “um favor” feito aos pobres, negros, indígenas ou estudantes de escolas públicas. Nada mais falso.
As cotas são uma resposta concreta a séculos de exclusão sistemática, onde o acesso à universidade foi privilégio de uma minoria branca, urbana e de classe média ou alta. Para a juventude amazônica, negra, indígena e periférica, as cotas representam uma brecha na muralha — um caminho possível para disputar espaços historicamente negados.
Dizer que cotas são “injustas” com quem sempre teve todas as oportunidades é ignorar deliberadamente que o ponto de partida nunca foi o mesmo. Enquanto uns frequentam escolas com ensino integral, cursos de idiomas e aulas de reforço, outros precisam faltar aula para trabalhar, caminhar quilômetros até a escola ou enfrentar o preconceito por falar uma segunda língua indígena.
As cotas não “tiram vagas”; elas recolocam vidas no centro de um processo de democratização do saber. Elas reconhecem que igualdade de oportunidades só existe quando há equidade. E isso não é privilégio. É justiça social.

Trabalho juvenil na Amazônia: o futuro sequestrado
Quando olhamos para o mundo do trabalho, a exclusão se repete. Jovens da Amazônia, sobretudo das áreas rurais e tradicionais, têm poucas oportunidades de inserção digna. Ao saírem da escola — ou mesmo durante a formação — os jovens amazônidas enfrentam esse desafio: o ingresso no mundo do trabalho. Para a juventude ribeirinha, indígena ou periférica, as opções são limitadas: agricultura sem apoio técnico, comércio informal, trabalho em aplicativos, ou, em casos mais extremos, a migração forçada em busca de sobrevivência.
O modelo de desenvolvimento imposto à região, baseado na mineração, grandes obras e agronegócio, não gera oportunidades reais para a juventude local. Ao contrário: explora os territórios e descarta as pessoas. Os jovens não são vistos como sujeitos de direitos, mas como força de trabalho barata e descartável.

Muitos entram por meio de políticas como o Jovem Aprendiz, um alento em meio ao desemprego, mas também um limitador de horizontes quando se torna a única opção. Outros se veem lançados à informalidade, ao subemprego, à gig economy dos aplicativos, onde não há direitos, apenas metas e algoritmos. Aqui, a luta de classes ganha contornos ainda mais evidentes: a juventude trabalhadora, especialmente negra e periférica, é usada como força produtiva descartável.
Quem lucra com os sonhos interrompidos?
Quando um jovem da periferia amazônica desiste da escola porque precisa trabalhar cedo, alguém lucra. Quando uma jovem indígena é barrada nos vestibulares por falta de políticas inclusivas, alguém lucra. Quando as oportunidades são concentradas e o acesso à educação de qualidade é um privilégio, há uma estrutura social que se beneficia diretamente da exclusão.
Os maiores lucros não são apenas financeiros — embora o capital econômico esteja sempre envolvido. Trata-se também de manutenção de poder, controle social e dominação simbólica.
O sistema produtivo lucra quando jovens são empurrados para o subemprego e a informalidade, sem formação crítica, com baixos salários e sem direitos. São corpos disponíveis, descartáveis, sem espaço para ascensão.
O mercado educacional privado lucra quando a escola pública é precarizada e empurra estudantes a recorrerem ao ensino pago para ter acesso mínimo à preparação para o Enem, vestibulares ou concursos.
As elites políticas e econômicas lucram com a permanência da ignorância política. Uma juventude desinformada ou descrente nas instituições tende a não questionar, não reivindicar, não se organizar.
O racismo estrutural e o colonialismo moderno também lucram. Ao impedir que jovens indígenas, negros e ribeirinhos acessem seus direitos, o sistema preserva o privilégio histórico de uma minoria, aquela que já nasce com acesso a tudo e que trata qualquer política de inclusão como “ameaça” ou “favor”.
Interromper sonhos, não é um acidente, é um projeto. Um projeto de país que ainda resiste em aceitar que a juventude da Amazônia, das periferias, dos povos originários e das comunidades tradicionais tem o direito não apenas de sonhar, mas de realizar.
A luta de classes no corpo e na vida dos jovens amazônidas

Falar de juventude, trabalho e educação na Amazônia é, inevitavelmente, falar de luta de classes. Essa luta não acontece apenas nas teorias; ela se expressa no cotidiano de milhares de jovens que são sistematicamente excluídos do acesso à educação de qualidade e a condições dignas de trabalho.
Ela se revela no cansaço do jovem que rema horas para estudar, na jovem negra que precisa abandonar a escola para cuidar de irmãos menores, no indígena que tenta conciliar sua formação escolar com a preservação de sua identidade. São histórias reais que escancaram as injustiças de um sistema que privilegia poucos e marginaliza muitos.
Por isso, a juventude das classes populares vive um duplo movimento: de um lado, é alvo da exclusão social e da criminalização; de outro, protagoniza movimentos sociais, culturais e políticos que confrontam essas injustiças.
Uma juventude que está aprendendo a ter voz e não se calar: resiste e reinventa possibilidades.
Jovens indígenas têm usado a educação como ferramenta de afirmação identitária e política. Coletivos culturais, comunicadores populares e organizações de base têm se espalhado pelos rios, florestas e periferias, promovendo debates, oficinas, formação política e produção de conhecimento a partir do território.
As ocupações escolares, os movimentos de juventude negra, indígena e periférica e as redes de articulação juvenil na Amazônia mostram que há potência transformadora nesses corpos historicamente oprimidos.
Apesar dos desafios, a juventude é também uma força ativa na construção de alternativas. Muitos jovens têm buscado caminhos autônomos de formação e inserção no mundo do trabalho por meio do empreendedorismo social, da economia solidária, da arte, da cultura digital e das lutas coletivas. Esses movimentos mostram que a juventude não é apenas vítima da exclusão, mas também protagonista de novas formas de resistência e produção de sentido.
Educar é tomar posição: entre o silenciamento e a emancipação
Diante disso tudo, volto então, à inquietação que motivou este texto: educar a juventude é também escolher um lado na luta de classes e, no caso da Amazônia, é também escolher entre a reprodução de um modelo colonizador ou a valorização das múltiplas vozes que ecoam na floresta, nos rios e nas periferias. Ou se reproduz a lógica da exclusão, escondida sob discursos meritocráticos e tecnocráticos ou se aposta numa formação emancipadora, que permita aos jovens não apenas sobreviver, mas viver com dignidade, consciência e sonhos possíveis.
Essa escolha não é neutra. E precisa ser feita, todos os dias, em cada sala de aula, em cada política pública, em cada ação coletiva.
Por fim, a juventude amazônica não precisa apenas de oportunidades; ela precisa de justiça, de escuta, de políticas públicas que compreendam sua complexidade e de um projeto de país que a reconheça como parte do futuro e do presente.

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Parabéns pela excelente análise crítica sob uma perspectiva sociológica acerca da temática!!!!