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Filhos do Silêncio: A Lenda do Boto e os crimes que ninguém quer ver

Imagem: Arquivo.Net
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Ka tücüna naina. Saudações, leitor(a).


Hoje, venho convidar você a refletir sobre uma questão que persiste, desafiando nossas consciências: as violências sexuais contra crianças e adolescentes nos interiores do Amazonas, onde a impunidade e o silenciamento continuam a alimentar ciclos de dor e sofrimento. Ao abordar esse tema, busco despertar um pensamento crítico, um questionamento profundo sobre a realidade que tem sido escondida sob o manto de mitos e lendas.


A lenda do boto cor-de-rosa, uma das mais conhecidas da nossa Amazônia, tem sido contada e recontada ao longo das gerações. No entanto, por trás dessa narrativa envolta em magia e sedução, se esconde uma verdade cruel: a história do boto não passa de uma invenção utilizada para encobrir os verdadeiros responsáveis pela violência contra mulheres e meninas nos interiores da nossa região. Durante décadas, essa lenda foi uma desculpa conveniente para desviar a culpa dos verdadeiros agressores, perpetuando a impunidade e o silenciamento, ao mesmo tempo em que culpabilizava as vítimas.

Segundo a lenda, o boto cor-de-rosa teria a habilidade de seduzir mulheres à beira dos rios, engravidando-as e desaparecendo sem deixar vestígios. Mas, ao longo dos anos, nunca se viu um filho com características de boto. Essa história fantasiosa foi fabricada por falsos moralistas para justificar a violência, oferecendo uma narrativa que absolvia os verdadeiros agressores, enquanto despojavam as mulheres da sua dignidade e as deixavam à mercê de uma sociedade que se recusava a reconhecê-las como vítimas reais.


Imagem: Arquivo.Net
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O mais trágico dessa lenda é o medo que ela impôs à vida de tantas mulheres, que passaram a temer a beira dos rios como se fosse um local de perigo iminente. No entanto, o verdadeiro perigo, como nos revela o tempo, frequentemente estava dentro de casa, nos próprios lares dessas mulheres. Os abusadores, muitas vezes, eram membros da família ou figuras de autoridade nas comunidades, pessoas que estavam protegidas pela estrutura de poder local. Em nome da preservação da imagem de uma "família perfeita", a sociedade preferia acreditar na história do boto do que enfrentar a dura realidade: os abusadores estavam dentro de casa.


Nos interiores do Amazonas, os crimes de violência sexual continuam a ser invisibilizados. Quando o agressor é uma pessoa com poder social ou influência local, o caso frequentemente é tratado com desdém ou ignorância. Em muitos casos, o agressor assume o papel de vítima, enquanto a mulher, em sua dor e sofrimento, é silenciosamente responsabilizada. Essa estrutura de culpabilização, perpetuada por um sistema de justiça ineficaz e autoridades despreparadas, leva a maioria dos casos de violência sexual a nunca chegarem ao judiciário. E quando o processo ocorre, ele muitas vezes serve apenas para expor a vítima, envergonhá-la e prejudicá-la, enquanto o agressor permanece impune.

A verdade que se esconde por trás dessa lenda é clara: a história do boto nunca foi sobre um ser mágico e incontrolável. Ela foi criada por uma sociedade que, ao longo do tempo, preferiu esconder a vergonha da violência cometida dentro de suas próprias casas. O verdadeiro boto, como todos nós sabemos agora, é o homem que abusa, é o sistema que silencia, e é a sociedade que, com sua indiferença e ignorância, perpetua o ciclo de violência.


Infelizmente, assistimos impotentes ao contínuo reaparecimento dos mesmos fatos, que seguem ocorrendo até os dias de hoje, principalmente nas áreas mais isoladas do Amazonas, onde o poder local frequentemente está nas mãos de homens de índole duvidosa.


É hora de quebrar o mito. É hora de revelar a verdade. É hora de dar voz àquelas que, por tanto tempo, foram silenciadas. As vítimas de violência sexual merecem ser tratadas com justiça, não como personagens de uma lenda que nunca deveria ter existido. O que você pensa sobre isso? Deixe sua opinião nos comentários e compartilhe suas perguntas. Juntos, podemos dar visibilidade à realidade que tantos tentam esconder. Até a próxima pauta.

*Inory Kanamari - Primeira advogada indígena do povo kanamari. Atuou como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM de 2022 a 2024, Vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA (Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia). Escreve como colaboradora toda terça-feira e aos sábados para o Portal Info.Revolução.
*Inory Kanamari - Primeira advogada indígena do povo kanamari. Atuou como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM de 2022 a 2024, Vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA (Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia). Escreve como colaboradora toda terça-feira e aos sábados para o Portal Info.Revolução.





 

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