O Crime Subterrâneo do Alter do Chão
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- há 19 horas
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E-mail: ailanybrito7@gmail.com
Quem caminha pelas praias de Alter do Chão ainda ouve a conhecida frase: “É o Caribe brasileiro.” Mas o que os olhos não alcançam preocupa mais do que a superfície. No subsolo, o Aquífero Alter do Chão — uma das maiores reservas de água doce do planeta — enfrenta sinais de vulnerabilidade e pressão ambiental. Enquanto o destino é promovido como paraíso turístico, especialistas alertam para um problema pouco discutido: a degradação silenciosa do sistema subterrâneo que abastece a região e sustenta a vida na Amazônia.
A narrativa da abundância, reforçada por matérias que descrevem seus 86 mil km³ de água, sua vasta extensão e sua recarga eficiente, cria a falsa ideia de que o Alter do Chão jamais entrará em colapso. Mas toda abundância pode ser destruída se for tratada como infinita. E é exatamente isso que está acontecendo.
O crescimento urbano desordenado, o avanço do desmatamento, a mineração ilegal, o uso descontrolado de poços artesianos e o despejo de resíduos em áreas de recarga formam um coquetel perigoso. Não se trata de medo ambientalista: trata-se de fatos. A pressão humana sobre o subsolo amazônico cresce ano após ano, enquanto o monitoramento científico e a fiscalização estatal seguem muito aquém da necessidade.
Águas escuras, interesses sujos
No início do ano, Alter do Chão virou manchete: as águas ficaram verdes, espessas, tomadas por um fenômeno que muitos moradores nunca tinham visto com tanta intensidade — a eutrofização. Vídeos circularam, especialistas alertaram, turistas se assustaram. Por alguns dias, o país inteiro olhou para cá. E como sempre acontece na Amazônia, o escândalo passou. Mas as consequências ficaram.
A floração de cianobactérias registrada pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), e que revelou toxinas acima do limite seguro para a saúde humana, não desapareceu com o fim do burburinho. Essas toxinas não pedem licença para continuar existindo. Elas permanecem, silenciosas, infiltrando-se no solo, afetando o ecossistema, ameaçando banhistas, ribeirinhos e todos que dependem dessa região para viver.
A reportagem de O Impacto deixou claro: a eutrofização não caiu do céu — foi alimentada por esgoto despejado sem tratamento, desmatamento, ocupação desordenada e resíduo urbano. Tudo isso continua acontecendo. Ou seja: aquilo que vimos em janeiro não foi um episódio isolado. Foi um sintoma. E se a superfície já mostra doença, o subterrâneo grita por socorro.
O aquífero como vítima invisível
Por baixo da terra, a situação é ainda mais grave. Um estudo publicado pela UNEB reforça que o Aquífero Alter do Chão, gigante silencioso, é altamente vulnerável à contaminação. É ele que recebe a infiltração de tudo que cai na superfície: nutrientes, resíduos, sedimentos, toxinas. É ele que abastece a vida. E é ele que está sendo lentamente comprometido, enquanto a opinião pública finge que o problema “já passou”.
A verdade é que a eutrofização não passou. Passou apenas a nossa indignação coletiva, adormecida pelo ciclo cruel das crises amazônicas: chocam, viralizam, desaparecem. Mas a água continua doente. O aquífero continua ameaçado. A contaminação continua avançando.
E Alter do Chão voltou à rotina como se suas águas não tivessem enviado um alerta claro: o colapso começa assim — primeiro no silêncio, depois na falta d’água, depois na irreversibilidade. Esse é o crime mais profundo: a contaminação de um reservatório estratégico, com impactos diretos na vida de pessoas vulneráveis.
Água é bem comum e não mercadoria
E enquanto isso, prefeitos, empresários e operadores do turismo seguem vendendo a imagem de paraíso, paralisados pela mesma lógica que destrói qualquer território amazônico: explora-se até onde dá; depois se culpa a chuva, a natureza, o calor. Mas é preciso dizer: A contaminação do aquífero Alter do Chão é um crime social, ambiental e intergeracional.
É revoltante ver que a maior preocupação de gestores e empresários é recuperar a imagem turística da região, e não a saúde do rio, das comunidades, do aquífero. A pressa em fazer o assunto morrer é uma política não declarada mas absolutamente eficaz. Por isso não é exagero dizer que a água subterrânea do Alter do Chão está sendo tratada como mercadoria. Não há uma governança que a defenda de verdade.
O impacto dessa negligência não é abstrato. Ele recai sobre populações ribeirinhas e comunidades tradicionais que dependem diretamente da água subterrânea para sobreviver. Recai sobre a saúde pública. Recai sobre o futuro. Quem viverá as consequências não são os empreendimentos que perfuram o solo sem estudo hidro geológico sério. São as pessoas invisibilizadas nas políticas que deveriam protegê-las.
É urgente tratar esse aquífero como infraestrutura natural estratégica, e não como fonte inesgotável e descartável. Isso exige: regulação rígida de perfurações, monitoramento contínuo, gestão participativa, saneamento e controle de resíduos, proteção ambiental forte para combater desmatamento, garimpo ilegal, ocupações predatórias.
Por que isso é uma luta política
Proteger o Alter do Chão não é só defender a natureza. É lutar por justiça social, por soberania hídrica e por um modelo de desenvolvimento que respeite a vida por debaixo e por cima. É assumir que a Amazônia não é apenas para o turismo fofo no Instagram, é território, cultura, gente, água, terra.
A eutrofização pode até ter saído das manchetes. Mas ela não saiu da água. Não saiu das nossas vidas. Não saiu do subterrâneo que nos sustenta. E é por isso que eu insisto: O crime ambiental contra Alter do Chão continua acontecendo — não por explosões súbitas, mas pela soma diária da negligência. E enquanto houver silêncio, ele vai continuar avançando.
Alter do Chão não precisa de esquecimento. Precisa de memória, denúncia e luta. E precisa disso agora. Se não agirmos agora, corremos o risco de um desastre invisível: um aquífero ameaçado, poluído e drenado. E quando a água subterrânea falhar, não haverá passeio de catraia, não haverá praia, apenas a secura da ganância.


















