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Palanque, pose e performance: como a visita do governador a Óbidos expôs a educação como vitrine e a política como encenação

Atualizado: 1 de jul.

Governador do Pará Helder Barbalho (MDB) - Imagem: Poder 360
Governador do Pará Helder Barbalho (MDB) - Imagem: Poder 360

 

A recente visita do governador Helder Barbalho ao município de Óbidos, na última sexta-feira 27, trouxe à tona uma série de questões que vão além da inauguração de obras e da entrega de cestas básicas. Em meio a palanques, apertos de mão e câmeras bem posicionadas, o que se viu foi menos compromisso com políticas públicas estruturantes e mais uma performance política cuidadosamente roteirizada.


Sob um sol escaldante de 13h da tarde, o povo de Óbidos foi convocado — direta ou indiretamente — a recepcionar o governador Helder Barbalho e sua comitiva. Crianças, estudantes, professores, funcionários públicos e curiosos se amontoavam sob tendas improvisadas, enfrentando o calor e o constrangimento típico de eventos pensados mais para as câmeras do que para as pessoas. Era mais um capítulo do projeto de poder que se disfarça de gestão presente: uma visita ensaiada, marcada por fotos cuidadosamente calculadas, discursos prontos e homenagens questionáveis. Enquanto a cidade enfrenta problemas históricos de infraestrutura, educação precária e desigualdade social gritante, o que se viu foi um espetáculo político em plena luz do dia — com direito a palmas, faixas e, claro, o já costumeiro uso da educação como vitrine eleitoral.

 

Quando a educação se cala diante do poder: o silêncio cúmplice por trás do título de Cidadão Obidense


Entre os momentos mais simbólicos – e polêmicos – da visita, está a entrega do título de Cidadão Obidense ao governador. A honraria, que deveria representar uma identificação profunda com a cidade e seu povo, foi concedida em um contexto marcado por abandono histórico, ausência de investimentos contínuos e uma relação superficial com as reais necessidades da população. A quem serve esse título? Ao povo que luta diariamente por direitos básicos, ou a um projeto de poder que transforma cada visita em capital político?


Talvez o que mais espante na concessão do título de Cidadão Obidense ao governador Helder Barbalho não seja o gesto em si — que já carrega forte teor simbólico e político —, mas o fato de que essa proposta partiu de uma professora, com longa atuação na rede pública de ensino, que hoje ocupa uma cadeira na Câmara de Vereadores.


Como alguém que conhece de perto a precariedade das escolas do município, a sobrecarga dos professores, o descaso com a educação indígena, ribeirinha e quilombola, pode se colocar ao lado de um governo que tem se notabilizado mais por estratégias de propaganda do que por compromisso efetivo com políticas públicas duradouras? Que tipo de memória institucional e coerência pedagógica se perde quando educadores, em lugar de resistência, optam pela conivência com o poder?

Conceder esse título, num contexto de protestos por melhores condições de trabalho, de greves docentes, de ameaças à autonomia das escolas do campo e de forte repressão a movimentos sociais, é naturalizar o apagamento da luta coletiva. É dar um prêmio simbólico a quem transformou escolas em vitrines eleitorais, e o IDEB em ferramenta de propaganda. E isso, vindo de alguém que deveria defender os valores da escola pública, é especialmente revoltante.


O título foi entregue, mas deixou cicatrizes na consciência de quem ainda acredita que a educação deve formar cidadãos críticos, e não eleitores passivos. Em tempos de espetáculo político, o silêncio de quem deveria gritar é uma das formas mais perversas de traição à própria história.

 

Capital político à custa do povo


O que se presencia nas recentes visitas do governador Helder Barbalho ao interior do estado, como em Óbidos, é mais do que cumprimento de agendas públicas: trata-se da consolidação de um projeto de poder que transforma cada visita em capital político. Esse fenômeno, que não é novo na história política da Amazônia, tem raízes profundas nas relações clientelistas, no patrimonialismo e na fragilidade institucional da presença do Estado em regiões periféricas.


No Pará, há um histórico de uso político da pobreza e da dependência como instrumentos de dominação. A distribuição de benefícios imediatos – como cestas básicas em momentos de calamidade – tem sido sistematicamente utilizada como moeda de barganha simbólica. Nas décadas de 1980 e 1990, essa lógica já era praticada por lideranças regionais que se mantinham no poder oferecendo benefícios pontuais em troca de votos e fidelidade. O que mudou foi o cenário estético: o palanque virou post, a rádio virou rede social.

A família Barbalho, por sua vez, domina há décadas os principais canais de comunicação do estado, o que garante o controle sobre a narrativa pública. Assim, uma simples visita vira manchete. Um gesto ensaiado com estudantes ou lideranças locais ganha dimensão de “governo presente e sensível”. A entrega de uma camiseta com #FocoNoIDEB, como ocorreu na Escola São José, torna-se símbolo de sucesso, mesmo que ignore as mazelas enfrentadas diariamente por professores e estudantes nas escolas da rede pública.


Esse capital político é acumulado não por meio de políticas transformadoras, mas por ações performáticas. Em vez de investir profundamente em infraestrutura, valorização docente e enfrentamento das desigualdades educacionais – especialmente nas zonas rurais e comunidades indígenas e quilombolas –, o governo opta por ações de forte apelo visual e midiático. Isso se evidencia, por exemplo, na polêmica lei 10.820/24, que desmontava a Educação Modular Indígena (SOMEI) e propunha ensino a distância em regiões sem sequer ter acesso regular à internet. Houve reação imediata: protestos, ocupações, greve, e, só então, o governo recuou. Mas o dano simbólico já estava feito.


Esse tipo de política de aparência ecoa o que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de capital simbólico: o poder que se exerce não por coerção direta, mas pela construção de uma imagem de legitimidade e prestígio. E quando essa imagem é cultivada por meio de visitas coreografadas e entregas pontuais, ela se torna perigosa, porque substitui a presença efetiva do Estado por sua encenação.


Na Amazônia, onde o acesso a direitos básicos ainda é desigual e os vazios institucionais são vastos, transformar visitas em marketing é uma forma eficaz de domínio. Mas não é, de forma alguma, uma resposta justa às urgências do povo. É preciso denunciar quando a política se converte em espetáculo e exigir que a imagem pública não substitua a justiça social.

 

Quando o IDEB vira troféu e o ensino, espetáculo


A Escola São José, uma instituição tradicional do ensino médio em Óbidos, na ocasião presenteou o governador com uma camisa estampada com o slogan #FocoNoIDEB. A imagem percorreu as redes sociais como símbolo de reconhecimento e parceria, mas, para quem vive a realidade da educação pública local, o gesto tem um sabor amargo.

Isso porque, em Óbidos, o IDEB se transformou em uma espécie de campeonato municipal não declarado. As escolas treinam seus alunos como se estivessem preparando equipes para uma olimpíada da pontuação. Simulados se acumulam, conteúdos são reduzidos a padrões de prova, e o ensino crítico é muitas vezes deixado de lado em nome de resultados numéricos.


Mais irônico – e triste – é o fato de que, quando uma escola tradicional atinge o mínimo da pontuação esperada, isso é celebrado com fanfarra, faixas, e agora, camisetas oferecidas a autoridades. Como se o simples fato de não estar na lanterna do ranking já justificasse festa. Comemora-se o básico como se fosse glória. A meta deixa de ser emancipar sujeitos e passa a ser agradar gestores.


O IDEB deveria ser um instrumento de análise e aprimoramento das políticas públicas, mas aqui virou troféu simbólico — e, pior, moeda política. Ao entregar a camisa, a escola não apenas celebrou uma pontuação, mas também legitimou um modelo de gestão que prioriza a aparência em detrimento da profundidade, e que transforma estudantes em números e escolas em vitrines.

 

Palanques desmontam, mas o descaso permanece


A visita do governador, marcada por gestos simbólicos e estratégias de marketing, escancara uma triste verdade: para muitos gestores, a educação continua sendo vitrine, não prioridade. Inaugurações de quartéis e distribuição de cestas básicas diante das enchentes são medidas paliativas e midiáticas, quando o que se espera — e se precisa — é planejamento, prevenção, obras de infraestrutura e políticas públicas consistentes e duradouras.


É urgente devolver à educação seu caráter emancipador. É urgente que as escolas deixem de ser palcos de disputa por pontuação e passem a ser, de fato, espaços de autonomia, pensamento crítico e pertencimento coletivo. É urgente que os gestores compreendam, de uma vez por todas, que respeito não se conquista com títulos honoríficos nem com camisetas estampadas, mas com presença real, escuta ativa e compromisso contínuo com as necessidades da população.


Óbidos merece mais do que promessas, mais do que selfies sorridentes e visitas cuidadosamente roteirizadas. Óbidos merece dignidade, políticas públicas sérias e uma educação que não se apague quando os palanques forem desmontados.


Ailane Brito: Técnica em agroecologia, radialista, pedagoga em formação pela UFOPA. Atua na área de sustentabilidade e educação, conciliando conhecimento técnico com música e poesia.
Ailane Brito: Técnica em agroecologia, radialista, pedagoga em formação pela UFOPA. Atua na área de sustentabilidade e educação, conciliando conhecimento técnico com música e poesia.

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2 comentários

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Francisco José Alfaia de Barro
01 de jul.

Avaliação sóbria, verdadeira, oportuna, reflexiva.

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01 de jul.
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Obrigada por sua leitura atenta e esse retorno tão valioso.

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