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Panos e camisetas usados como absorventes nos presídios

Mariana Rosetti e Paola Churchill, especial para a Ponte 05/09/2025
Mariana Rosetti e Paola Churchill, especial para a Ponte 05/09/2025

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Enquanto o Governo Federal implementa a distribuição gratuita de absorventes como política de dignidade menstrual, mulheres presas em São Paulo usam panos e colchões rasgados para conter sangramentos mensais. A reportagem da Ponte analisou relatórios de inspeções realizados pela Defensoria Pública do Estado que revelam como unidades prisionais femininas seguem descumprindo obrigações básicas de cuidado com a saúde íntima das detentas — mesmo após avanços legais e implementação de políticas públicas federais que garantem esse direito.

 

Desde 2024, o programa Dignidade Menstrual, coordenado pelo Ministério da Saúde, prevê a entrega regular de absorventes a pessoas em situação de vulnerabilidade, incluindo mulheres privadas de liberdade. E, antes disso, a Resolução nº 29, de 1º de dezembro de 2022 já obrigava as unidades prisionais a fornecer itens de higiene menstrual, água corrente, roupas íntimas adequadas e acompanhamento ginecológico.


Na prática, porém, os relatos reunidos em cinco inspeções da Defensoria indicam o oposto: violações recorrentes, escassez crônica de insumos e descaso institucionalizado — numa cadeia de omissões que continua deixando essas mulheres à margem da dignidade física e menstrual.


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Escassez de produtos de higiene e racionamento de água


Na Penitenciária Feminina de Mogi-Guaçu, cidade do interior do Estado de São Paulo, uma inspeção realizada em fevereiro de 2025, constatou que “são entregues mensalmente duas unidades de sabonetes, quatro rolos de papel higiênico e 16 unidades de absorventes íntimos” — quantidade considerada insuficiente pelas internas. Uma delas relatou que, “na falta de papel higiênico, usa o colchão” para garantir a sua higiene íntima.


Além disso, “a direção da penitenciária confirmou à equipe de inspeção que há racionamento de água na unidade” e explicou que o fornecimento acontece em horários pré-determinados, sendo necessário que as presas possuam “garrafas plásticas nas celas para armazenarem o bem e o utilizarem no restante do dia”.  Embora a unidade conte com ginecologista cedida pela Secretaria de Saúde de Mogi Guaçu, o atendimento é pontual. A médica comparece uma vez por semana e divide a demanda com outras especialidades, o que dificulta o acesso regular a exames preventivos e consultas ginecológicas.


Já no Centro de Progressão de Pena do Butantã, na zona oeste de São Paulo, as mulheres relataram às equipes que recebem apenas “1 sabonete, 1 rolo de papel higiênico, 1 pacote de absorvente com 8 absorventes, 1 pasta de dente, 1 escova dental e 1 aparelho de barbear”, entregues na chegada — sem reposição posterior. A denúncia mais grave aponta que “muitas vezes precisam utilizar panos ou camisetas como absorventes porque a quantidade fornecida é insuficiente”.


Além disso, “a água que as custodiadas bebem é proveniente da torneira dos banheiros das celas”. Existem tanques para lavarem suas roupas na área destinada ao banho de sol, mas, como ele é restrito, mulheres “se veem obrigadas a lavarem suas roupas no chão dos banheiros” e as secam em varais improvisados dentro das celas pouco ventiladas.


Apesar da presença de uma ginecologista duas vezes por semana, as detentas “não conseguem acesso a consultas médicas e aos exames regulares de saúde da mulher”. Segundo afirmam, “se fazem reclamações sobre a falta de acesso ao médico, são ameaçadas de serem enviadas ao castigo”.


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O que diz a lei


Na cartilha que usa para disseminar as informações sobre o programa Dignidade Menstrual,  o Ministério da Saúde diz que “os preconceitos, a precariedade no acesso a absorventes e outros itens de higiene” gera “estigma e exclusão social”. E prossegue: “Dessa forma, as pessoas mais vulneráveis têm direitos violados, limitações à sua liberdade e prejuízos à saúde física e mental.” 


Segundo as informações do documento, o período menstrual “pode ocasionar diversos problemas como: alergia e irritação da pele e nas mucosas; infecções urogenitais como a cistite e a candidíase; e impactos na saúde emocional, causando desconfortos, insegurança e estresse.”


Recomenda-se que “as trocas de absorventes devem ser realizadas num prazo de seis horas aproximadamente, a depender do fluxo menstrual.” Desta forma é imprescindível “atenção diferenciada com as ações de higiene íntima, a fim de proporcionar conforto e bem-estar, além de prevenir doenças. Recomenda-se o autocuidado por meio de: higienização com água limpa e sabonete quando necessário; uso de roupas leves e confortáveis; hidratação (beber água) e boa alimentação”. 


As orientações são reiteradas pela médica obstetra Albertina Duarte Takiuti, chefe do Ambulatório de Ginecologia na Adolescência da USP. A falta de higiene íntima adequada, “vai fazer com que haja várias infecções uterinas, inclusive favorecendo doenças inflamatórias graves que podem causar até sepse”. As consequências a longo prazo são devastadoras: “O mais grave são as dores permanentes, as trompas inflamadas que podem ser obstruídas, comprometendo o futuro reprodutivo.”


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Na falta do Estado, o poder paralelo


Na inspeção realizada na Penitenciária Feminina de Santana, no bairro Santana, zona norte de São Paulo, em janeiro de 2024, a ginecologista da unidade “foi a mais criticada. Trata as presas como ‘peças de açougue’”, segundo os relatos. A demora em atendimentos e a remarcação de exames por “ausência de escolta” também foram destacados.


Uma das “maiores reclamações foi com relação ao kit higiene, pois é fornecida pouca quantidade”, incluindo “1 sabonete de péssima qualidade, 1 pasta, 1 escova, 4 rolos de papel higiênico e pacotes de absorventes, este mensal (o que é insuficiente para algumas presas)”. Por fim, uma das frases mais emblemáticas da visita: “Na falta do Estado, vem o paralelo”, disse uma presa, resumindo o cenário em que a ausência de políticas públicas acaba favorecendo a influência de facções dentro das unidades.


A inspeção na Penitenciária Feminina de Guariba, na região metropolitana de Ribeirão Preto,  em janeiro de 2023, revelou que o kit de higiene distribuído uma vez por mês é considerado insuficiente para atender às necessidades básicas das mulheres. Ele contém “papel higiênico em pouca quantidade, 2 sabonetes pequenos, 1 pasta de dente e 2 pacotes pequenos de absorventes”.

 

No campo da saúde, a unidade “não possui equipe de saúde própria”. A estrutura existente depende da contratação externa, incluindo um clínico geral e dois auxiliares de enfermagem. Ginecologistas não foram mencionados no corpo técnico. O atendimento é esporádico: “houve muitos relatos de que o atendimento médico é precário, pois as consultas demoram muito e a unidade não fornece medicamentos”.


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Dever internacional de proteção à saúde sexual e reprodutiva


O Brasil é signatário de tratados e normativas internacionais que reforçam o dever de proteção da saúde sexual e reprodutiva de mulheres. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada pela ONU em 1979, determina que os Estados garantam, em igualdade de condições, o acesso das mulheres a serviços médicos, incluindo os de planejamento familiar.  


A Convenção Interamericana de Belém do Pará, em vigor desde 1994, reconhece como violência institucional a omissão do Estado em assegurar a integridade física, mental e moral das mulheres sob sua custódia. Também as Regras de Bangkok – aprovadas pela ONU em 2010 estabeleceram princípios específicos para o tratamento de mulheres presas, considerando suas particularidades biológicas, sociais e psicológicas. A Regra 5 é categórica ao afirmar que a acomodação de mulheres privadas de liberdade deve contemplar instalações e materiais adequados às suas necessidades de higiene, com a oferta gratuita de absorventes higiênicos e acesso regular à água.


Há mais de quatro décadas, portanto, os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil reconhecem a saúde sexual e reprodutiva como um direito humano inalienável. O cenário que se impõe nas prisões femininas, contudo, revela um descumprimento sistemático desses compromissos — onde a negligência ginecológica e a pobreza menstrual são sintomas de uma violência de Estado silenciosa, mas institucionalizada.


A comparação com outros países reforça esse contraste. Nos Estados Unidos, desde 2018, o First Step Act determinou que todas as prisões federais devem fornecer absorventes de forma gratuita. Na Califórnia, avanços recentes incluem a aprovação da lei AB 1810, que garante acesso livre e irrestrito a produtos menstruais dentro das prisões. O Reino Unido, em 2019, anunciou a distribuição gratuita de absorventes para todas as pessoas detidas que menstruam — medida que também contempla homens trans privados de liberdade.


Já a Catalunha, na Espanha, adotou em 2024 uma iniciativa pioneira: a distribuição de produtos menstruais reutilizáveis, como calcinhas absorventes, copos e absorventes de pano, em farmácias públicas — política que, embora voltada a toda a população, pode servir de inspiração para o sistema prisional por combinar redução de custos e sustentabilidade.


O que dizem as autoridades


A reportagem procurou a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo, por e-mail, e questionou as condições de atendimento ginecológico, a distribuição de itens de higiene menstrual, o acesso à água, a logística para exames médicos e o cumprimento de diretrizes internacionais de direitos humanos em unidades prisionais femininas. O pedido também mencionava relatos de sangramentos contínuos, pobreza menstrual, negligência médica, escassez de absorventes, superlotação e relatos de ameaça a presas que solicitam atendimento.


Até a publicação deste texto, a SAP não havia respondido aos questionamentos. O espaço segue aberto e a reportagem será atualizada caso haja retorno.


 FONTE: Ponte

NOTA DA REDAÇÃO: O Portal Info.Revolução publicará, todos os domingos, Artigos e Matérias do Portal Ponte. Com essa parceria, juntos, os Portais ajudam a dar voz a quem de fato necessita.

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