Tiradentes é feriado, os povos indígenas ainda não: silêncios que gritam na memória nacional
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- 21 de abr.
- 4 min de leitura

Por Ailane Brito
Email: ailanybrito7@gmail.com
Em meio ao mês de abril, dois dias saltam no calendário: o 19 e o 21. No primeiro, o Brasil “lembra” os povos indígenas — ou melhor, finge lembrar. No segundo, feriado nacional, celebra-se a memória de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. A disparidade no tratamento dessas datas não é mero acaso; é um sintoma profundo do que a sociedade brasileira valoriza e do que escolhe esquecer.
Tiradentes é reverenciado como mártir da Inconfidência Mineira, herói da pátria, símbolo de resistência contra a Coroa portuguesa. Seu rosto, estereotipado, está ladeada pelo dístico Brasil, ilustrando a moeda nacional, nas escolas, nas ruas e, claro, no feriado que interrompe a rotina do país inteiro. Mas e os povos indígenas? Aqueles que resistem há mais de cinco séculos à invasão, à expropriação e ao genocídio contínuo? Para eles, nenhum feriado. Apenas um dia simbólico, geralmente marcado por atividades escolares folclóricas, representações caricatas e discursos vazios.
É como se a história do Brasil tivesse começado com a chegada dos colonizadores e seus aliados revolucionários brancos. O apagamento dos povos originários não é apenas histórico — é político. Enquanto exaltamos um homem que lutou contra a dominação estrangeira, ignoramos os milhares de indígenas que tombaram (e continuam tombando) por defender seus territórios, culturas e modos de vida. A ironia é brutal.
Imagem: Info.Revolução
Essa abordagem superficial da data é reflexo de uma educação ainda fortemente marcada por uma visão eurocêntrica e colonial. Muitas escolas continuam a retratar os povos originários de forma estereotipada, desconsiderando sua diversidade e contemporaneidade. Além disso, o relatório da Comissão Nacional da Verdade reconhece que os povos indígenas foram alvos de violações sistemáticas de direitos humanos durante o período da ditadura militar, incluindo remoções forçadas e massacres — situações muitas vezes ausentes dos currículos escolares.
O Instituto Socioambiental (ISA) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) também denunciam anualmente o esvaziamento político da data, destacando que o 19 de abril muitas vezes serve mais para manter uma imagem folclorizada do indígena do que para discutir suas pautas reais, como demarcação de terras, saúde, educação bilíngue e respeito à autodeterminação.
Mais do que um feriado, o 19 de abril deveria ser um marco de reflexão, reparação e visibilidade real. Se há uma dívida histórica a ser paga, ela começa pelo reconhecimento concreto da importância dos povos indígenas para o Brasil — e isso inclui, sim, um feriado nacional.
Valorizar Tiradentes sem reconhecer a centralidade da resistência indígena é perpetuar uma narrativa colonial. O feriado de 21 de abril, quando desvinculado de um olhar mais amplo sobre a história do Brasil, acaba reforçando uma memória seletiva, que privilegia determinadas figuras enquanto marginaliza outras, como os povos indígenas — os primeiros a resistirem à dominação colonial.
Apesar do silenciamento histórico e da falta de reconhecimento oficial — como um feriado nacional, por exemplo — os povos indígenas têm ressignificado o 19 de abril como um dia de afirmação, resistência e orgulho identitário. Eles não apenas “comemoram”, mas transformam essa data em um instrumento político e cultural.
É nesse dia que comunidades em todo o país se reúnem para reafirmar suas identidades, celebrar suas culturas e denunciar as violências que continuam sofrendo. Marchas, mobilizações políticas, apresentações culturais, debates, ocupações de espaços públicos e manifestações nas redes sociais são algumas das formas que os povos originários encontraram para dar voz à sua luta e à sua história.
O 19 de abril tornou-se um símbolo vivo de resistência contemporânea. É uma forma dos próprios povos terem controle de suas narrativas e mostrarem ao país sua verdadeira história — contada por eles mesmos. Com seus corpos, suas línguas, seus cantos e seus saberes, eles enfrentam séculos de silenciamento e reivindicam o direito de existir para além dos estereótipos.
Cada dança ritualizada, cada pintura corporal, cada entoação em língua ancestral é, por si só, um ato político. É a reafirmação de que resistir não é apenas sobreviver, mas também preservar, criar e se reinventar. Em um país que tantas vezes tenta apagar, invisibilizar ou folclorizar essas existências, os povos indígenas reagem com o que têm de mais valioso: sua cultura viva.
Eles tomam as praças, ocupam as redes, entram nas universidades, falam nas tribunas. E fazem isso com a firmeza de quem sabe que sua história não começou em 1500 e não termina nos livros didáticos. Fazem isso com a consciência de que sua luta não é apenas por território físico, mas por território simbólico, pelo direito de dizer quem são, de onde vêm e como querem ser vistos.
Eles não pedem homenagens vazias — exigem respeito, escuta, demarcação e espaço. E o 19 de abril, quando assumido por eles, deixa de ser uma data decorativa e passa a ser um grito coletivo: “Ainda estamos aqui. E não vamos desaparecer.”
O Brasil é feito de muitas histórias — algumas celebradas, outras silenciadas. Por isso, mais do que datas no calendário, precisamos de um compromisso com a escuta, com a verdade e com a reparação histórica. Afinal, que vozes estamos ouvindo? Que histórias estamos contando? E, sobretudo, que país queremos construir a partir dessas memórias?

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