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UFPA: A ConivĂȘncia Institucional com o Racismo, Xenofobia e Preconceito Contra Alunos Negros, IndĂ­genas, Estrangeiros e Deficientes

Ka tĂŒcĂŒna naina. Frase escrita na gramĂĄtica kanamari e traduzida para o portuguĂȘs significa: OlĂĄ, leitor(a).


O objetivo deste artigo Ă© trazer Ă  tona uma realidade que tem sido silenciada e ignorada por muitos: o racismo, o preconceito e a xenofobia institucional dentro das universidades, como ocorre na Universidade Federal do ParĂĄ (UFPA). Com minha vivĂȘncia como mulher indĂ­gena, sou testemunha e porta-voz de inĂșmeras vĂ­timas que, como eu, enfrentam um sistema que nĂŁo apenas negligencia, mas ativamente perpetua a exclusĂŁo de grupos historicamente marginalizados.


O estado do ParĂĄ, com sua rica diversidade de povos indĂ­genas e uma população negra moldada pela luta e resistĂȘncia, ainda enfrenta uma realidade em que tanto o estado quanto a UFPA nĂŁo reconhecem verdadeiramente o valor e a dignidade dos povos originĂĄrios. Isso gera enormes prejuĂ­zos sociais e histĂłricos, mantendo essas populaçÔes marginalizadas e com acesso limitado Ă  educação superior.


 Imagem: Inory Kanamari
Imagem: Inory Kanamari

Embora a UFPA seja uma instituição pĂșblica com um programa de cotas destinado a garantir o ingresso de estudantes negros e indĂ­genas, na prĂĄtica, essa polĂ­tica nĂŁo passa de uma fachada. O processo seletivo para o mestrado, por exemplo, revela uma estratĂ©gia de engano, em que a universidade oferece vagas para negros e indĂ­genas, mas adota prĂĄticas que desrespeitam e deslegitimam a identidade racial e indĂ­gena dos candidatos, chegando a abusar institucionalmente.


Candidatos que apresentam documentos que comprovam sua identidade indĂ­gena ou negra sĂŁo submetidos a uma humilhação pĂșblica e uma pseudoavaliação de sua “autodeclaração”, realizada por uma banca composta, em sua maioria, por professores brancos e elitizados. Esses membros tĂȘm a incumbĂȘncia de decidir quem Ă© indĂ­gena ou negro, desconsiderando completamente os documentos apresentados. O mais cruel Ă© o comportamento desrespeitoso e a violĂȘncia psicolĂłgica cometida durante essas seleçÔes, com gritos e humilhaçÔes, que buscam invalidar a identidade racial e indĂ­gena dos candidatos. Esses estudantes sĂŁo impedidos atĂ© de registrar qualquer parte do processo, sendo submetidos a uma verdadeira tortura psicolĂłgica.


Caso decidam recorrer da decisão, os candidatos enfrentam mais uma injustiça: o recurso é julgado pela mesma banca que os desclassificou, configurando um evidente conflito de interesse e revelando a falta de imparcialidade do processo. O que se perpetua é um sistema excludente que desconsidera a verdadeira identidade dos povos indígenas e negros.


Minha experiĂȘncia pessoal no processo seletivo de 2021 para o mestrado na UFPA exemplifica essa violĂȘncia institucional. Fui reprovada com o argumento absurdo de que meu Registro Administrativo de Nascimento IndĂ­gena (RANI), emitido pela FUNAI, seria falso. A antropĂłloga responsĂĄvel pela avaliação desconsiderou a realidade da emissĂŁo de documentos pela FUNAI, que sĂł pode ser feito quando o indĂ­gena viaja a locais com estrutura para tal. AlĂ©m disso, ignorou minha histĂłria e a luta da minha famĂ­lia pela preservação da nossa cultura. Em um ato de desrespeito absoluto, a antropĂłloga me chamou de mentirosa em frente aos membros da banca, negando atĂ© a existĂȘncia do povo Kanamari e ignorando a histĂłria do meu povo, que, embora originĂĄrio do Rio JuruĂĄ, tem parte de seus membros migrados para o Vale do Javari.

Esse não é um caso isolado. Em 2023, a estudante Clara Costa também teve sua autodeclaração como negra contestada pela mesma banca de heteroidentificação, apesar de sua história de vida e identidade racial evidentes. O que estå em jogo não é apenas o acesso à cota, mas a dignidade e o direito à educação superior de indivíduos que, como nós, fomos historicamente marginalizados e oprimidos.


Infelizmente, sĂŁo inĂșmeras as vĂ­timas da pseudoantropĂłloga protegida pela UFPA. HĂĄ diversos relatos de alunos negros, indĂ­genas, estrangeiros e com deficiĂȘncia que denunciaram abusos cometidos por Jane BeltrĂŁo. A UFPA, por sua vez, tem se mantido inerte, sem tomar açÔes concretas para corrigir essa situação. Nas Ășltimas semanas, estudantes vĂ­timas de abusos se reuniram para protestar contra o racismo, preconceito e xenofobia institucionalizados na universidade.


NĂŁo podemos mais permitir que a UFPA e outras instituiçÔes pĂșblicas continuem a ser coniventes com essas prĂĄticas de discriminação. A universidade tem a obrigação de promover uma educação inclusiva, que respeite as identidades raciais e culturais de seus alunos, ao invĂ©s de perpetuar um ambiente de humilhação e preconceito. A recente nota emitida pela UFPA, tentando se distanciar das atitudes racistas da professora Jane BeltrĂŁo, Ă© insuficiente e revela a inação da instituição diante da gravidade da situação. RepĂșdio nĂŁo basta. A UFPA precisa abrir procedimentos administrativos para investigar e punir as atitudes discriminatĂłrias e racistas dentro de seu ambiente.


O mais doloroso é perceber o desconhecimento e o desprezo pela história e pela luta dos grupos minorizados. Para nós, negros e indígenas, o acesso à educação jå é um obståculo imenso, uma batalha constante. Quando finalmente conseguimos alcançar a oportunidade de ingressar na universidade, nos deparamos com uma instituição que, ao invés de nos apoiar, perpetua o racismo, o preconceito e a xenofobia. Isso não apenas gera sofrimento emocional profundo, mas também prejuízos financeiros irreparåveis, uma vez que muitos de nós investimos tempo, recursos e esperanças em um processo seletivo que, ao invés de acolher, deslegitima nossas identidades. O resultado é uma dor ainda maior: a frustração de não ver justiça, de ver nossos direitos negados e nossa dignidade esmagada.


NĂłs, como advogadas, acadĂȘmicas e militantes indĂ­genas e negras, exigimos o fim da conivĂȘncia da UFPA com essas prĂĄticas desumanas. Exigimos que o processo de seleção seja verdadeiramente inclusivo, que as polĂ­ticas de cotas sejam efetivas e que os direitos dos povos originĂĄrios e da população negra sejam respeitados. O que estĂĄ em jogo Ă© o nosso direito de existir, de ser quem somos, sem sermos humilhados ou deslegitimados. A luta continua, e estamos aqui para garantir que as vĂ­timas do racismo e da xenofobia institucional encontrem justiça.


*Inory Kanamari -  Primeira advogada indĂ­gena do povo kanamari. Atuou como presidente da ComissĂŁo de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos IndĂ­genas da OAB/AM de 2022 a 2024, Vice-presidente da ComissĂŁo Especial de Amparo e Defesa dos Povos IndĂ­genas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a lĂ­ngua indĂ­gena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA (Academia de Letras, CiĂȘncia e Cultura da AmazĂŽnia). Escreve como colaboradora toda terça-feira para o Portal Info.Revolução.
*Inory Kanamari - Primeira advogada indĂ­gena do povo kanamari. Atuou como presidente da ComissĂŁo de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos IndĂ­genas da OAB/AM de 2022 a 2024, Vice-presidente da ComissĂŁo Especial de Amparo e Defesa dos Povos IndĂ­genas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a lĂ­ngua indĂ­gena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA (Academia de Letras, CiĂȘncia e Cultura da AmazĂŽnia). Escreve como colaboradora toda terça-feira para o Portal Info.Revolução.


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