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A Foz do Amazonas e o furo da coerência ambiental



A ironia tem nome e data: a poucos dias da COP30 — conferência global do clima que o Brasil sediará em Belém — o Ibama concedeu licença à Petrobras para perfurar um poço exploratório de petróleo na Foz do Amazonas, litoral do Amapá. O anúncio, noticiado pela Agência Brasil, reacendeu um debate que parece nunca envelhecer: até onde vai o direito de explorar e onde começa o dever de preservar?


De um lado, a Petrobras e o governo defendem que a autorização é “apenas exploratória” e que seguirá todas as normas de segurança. O discurso é revestido de termos técnicos, sustentando que a Margem Equatorial — região que abrange o Amapá, o Pará e parte do Maranhão — pode esconder reservas semelhantes às encontradas na Guiana e no Suriname. O argumento é sedutor: soberania energética, empregos, royalties, crescimento.


Mas será que ainda é possível sustentar o velho mantra do “progresso a qualquer custo” quando o custo pode ser o colapso de um ecossistema inteiro?

 

Entre o petróleo e o planeta

A decisão do Ibama não acontece no vácuo. A região onde a Petrobras pretende perfurar é uma das mais sensíveis do país: abriga a maior faixa contínua de manguezais do mundo e o Grande Sistema de Recifes da Amazônia (GARS), descoberto há menos de uma década. Segundo levantamento da InfoAmazonia, um eventual vazamento de óleo nessa área teria consequências devastadoras, pois as correntes oceânicas dificultam qualquer tentativa de contenção.

Os recifes e manguezais não são apenas beleza natural: são barreiras vivas que protegem o litoral, abrigam peixes, crustáceos e sustentam comunidades inteiras que vivem da pesca artesanal. E aqui surge o primeiro paradoxo: o mesmo Estado que diz defender a Amazônia autoriza sua perfuração submarina.


É o mesmo Estado que promove a COP30 com o lema da transição energética, mas sinaliza ao mundo que ainda aposta no velho ouro negro. É o mesmo país que pede financiamento internacional para combater o desmatamento e, ao mesmo tempo, aprofunda sua dependência dos combustíveis fósseis.

 

Um discurso que vaza


Margem Equatorial - Imagem: Reprodução
Margem Equatorial - Imagem: Reprodução

Não é de hoje que o licenciamento da Foz do Amazonas é motivo de disputa. Em 2023, o próprio Ibama havia negado a autorização por “inconsistências” nos estudos ambientais. O que mudou de lá para cá? A ciência ficou mais precisa ou a pressão política ficou mais forte?


Reportagem do Brasil de Fato revelou que setores do governo ligados à área energética pressionaram pela liberação, vista como uma “vitória da ala desenvolvimentista” e uma derrota para o núcleo ambiental.


O discurso da “transição equilibrada” soa bonito, mas na prática mascara o que o Observatório do Clima chamou de retrocesso climático.

 

As vozes que o mar não silencia


As comunidades costeiras do Amapá — pescadores, quilombolas e povos indígenas — afirmam não ter sido devidamente consultadas.


Na pressa de perfurar, as vozes da beira do rio parecem ter sido abafadas pelo som das máquinas. Como acreditar em um licenciamento “sustentável” se os principais afetados não participaram da decisão?


A ausência de diálogo é tão grave quanto o impacto ambiental. É um desrespeito histórico que ecoa as velhas práticas coloniais: o centro decide, a Amazônia obedece; o lucro é nacional, o dano é local.

Para que o mundo mantenha o aquecimento global abaixo de 1,5 °C, não se pode abrir novos campos de petróleo e gás. Essa é a ciência falando, não a militância. O que o Brasil faz ao liberar a perfuração é o oposto: tenta equilibrar-se entre o petróleo e o planeta, e corre o risco de cair dos dois lados.

Em resposta à decisão que liberou a perfuração de petróleo na Foz do Amazonas, oito organizações ligadas aos movimentos ambientalista, indígena, quilombola e de pescadores artesanais acionaram, nesta quarta-feira (22), a Justiça Federal do Pará. A ação, movida contra o Ibama, a Petrobras e a União, busca anular o licenciamento do Bloco FZA-M-59 — símbolo da contradição entre o discurso ambiental do país e suas práticas extrativistas.

 

Transição ou contradição?


Há quem diga que explorar petróleo hoje é um “mal necessário” para financiar a transição energética. Mas há algo profundamente contraditório em financiar o futuro verde com dinheiro negro.


O país que lidera a pauta do clima na Amazônia precisa fazer escolhas coerentes com seu discurso — e não apenas diplomáticas. Não existe neutralidade quando o assunto é a destruição do planeta. E a decisão do Ibama, embora técnica, é também profundamente política.

Mais do que um risco ambiental, a licença da Foz do Amazonas representa um risco simbólico. Ao liberar a perfuração, o Brasil envia ao mundo a mensagem de que a Amazônia continua sendo vista como fronteira de exploração, não como território de vida. E se o governo acredita que essa decisão passará despercebida durante a COP30, engana-se: ela já se tornou um símbolo de incoerência ambiental.

Em vez de liderar a transição energética, o governo brasileiro lidera a transição da hipocrisia — aquela que fala em sustentabilidade de terno e gravata enquanto o óleo se espalha nas profundezas do mar.

 

O futuro não se perfura


A Amazônia é a fronteira final, não a nova fronteira do petróleo. O verdadeiro desenvolvimento não é aquele que extrai o máximo do solo ou do mar, mas o que reconhece o valor do que não pode ser substituído. O país que sedia a COP30 como anfitrião do futuro verde continua preso à lógica fóssil do passado.


Antes de perfurar o fundo do oceano, o Brasil precisa olhar para o fundo de sua consciência.


Porque, no fim das contas, não é só o petróleo que corre o risco de vazar — é também a credibilidade de uma nação que diz proteger a floresta, mas está sempre disposta a perfurar o seu próprio discurso.

 

 

Ailane Brito: Técnica em agroecologia, radialista, pedagoga em formação pela UFOPA. Atua na área de sustentabilidade e educação, conciliando conhecimento técnico com música e poesia.
Ailane Brito: Técnica em agroecologia, radialista, pedagoga em formação pela UFOPA. Atua na área de sustentabilidade e educação, conciliando conhecimento técnico com música e poesia.

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