Olhos d’água na cela: o crime de Estado contra uma mulher indígena na Amazônia
- contatoinforevollu
- há 6 dias
- 7 min de leitura

E-mail: ailanybrito7@gmail.com
Eu não sei por quê, mas ao ler a notícia da mulher indígena violentada por policiais numa delegacia no interior do Amazonas, me lembrei de Olhos d’água — obra de Conceição Evaristo. Talvez tenha sido o silêncio. Ou os olhos. Ou o modo como a dor parecia transbordar mesmo sem gritar.
Era como se os "olhos d’água" daquela mulher indígena também estivessem ali, do outro lado da notícia, chorando rios represados por séculos de abandono, de racismo, de violência mascarada de autoridade. Era como se, entre uma cela e outra, entre uma lágrima contida e outra engolida, os contos de Evaristo encontrasse a brutal realidade amazônica. E não tive como separar a literatura daquela vida. É que a dor tem esse jeito estranho de se reconhecer. Mesmo quando muda de nome, de rosto, de geografia.
Foi aí que entendi: não era só sobre ela. Era sobre tantas. Seu corpo violentado representa o corpo coletivo de milhares de mulheres amazônicas — indígenas, quilombolas, ribeirinhas — que carregam marcas que o Brasil insiste em não ver.
O silêncio que estupra: mulheres amazônicas entre a violência e o apagamento
Não é exagero. É fato. Uma mulher indígena da etnia Kokama, presa injustamente em 2022 quando buscava ajuda após sofrer violência doméstica, foi estuprada sistematicamente por policiais militares e um guarda municipal dentro de uma delegacia no Amazonas, por nove meses. Isso aconteceu sob custódia do Estado, dentro de uma instituição pública, em nome da “segurança”.
O caso é brutal. Indefensável. Inaceitável. E mesmo assim, a resposta oficial parece hesitante, morna, burocrática, como se estivéssemos falando de números, e não de uma mulher que teve sua dignidade pisoteada por aqueles que juraram proteger. A vítima foi mantida numa cela com homens, amamentou sob abuso, foi violentada física, sexual e psicologicamente diante do próprio filho. Uma mulher indígena violada dentro das entranhas podres do sistema penal brasileiro, esse é o retrato da nossa barbárie.
A denúncia da mulher Kokama é um grito que atravessa as matas, os rios e os barrancos: “não sou só eu”. É também a voz sufocada de tantas outras que não tiveram força, ou chance, ou tempo de denunciar. É o eco de meninas que nunca voltaram da cidade, de mães que desapareceram nos garimpos, de filhas caladas por medo, vergonha, humilhação.
Quantas outras mulheres não gritaram? Quantas foram violentadas nos rincões da floresta, nos beiradões esquecidos pelo poder público, nas comunidades quilombolas onde o acesso à justiça é negado antes mesmo que se entenda o que é justiça? Quantas mulheres já foram abusadas por fardas que deveriam protegê-las? Quantas delegacias na Amazônia operam como “prisões provisórias” em condições medievais, onde mulher e criança são trancadas com homens, sem estrutura, sem acompanhamento, sem lei?
Enquanto não se reconhece que há uma epidemia de violência contra mulheres amazônicas — que mistura racismo, machismo, pobreza e abandono institucional. Enquanto os agressores seguem livres, muitas vezes protegidos pelo próprio aparato estatal — seguiremos enterrando vítimas em silêncio.
Isso não é descuido. É projeto
Não adianta tratar esse caso como “desvio de conduta individual”. Não é. É um crime de Estado. Quando seis agentes públicos repetem estupros por meses e ninguém faz nada, estamos diante de um esquema de violência institucional, racismo estrutural e misoginia sistêmica.
A mulher foi ignorada mesmo após nove pedidos da Defensoria Pública. Só agora, com a pressão da imprensa e da comoção pública, o Ministério Público pediu a prisão dos suspeitos. E mesmo assim, os policiais seguem soltos — enquanto a vítima, pasmem, segue submetida a uma onda de racismo institucional. Isso é justiça? Isso é o sistema funcionando? Isso é civilização?
A quem protege o silêncio? É impossível não perguntar: se fosse uma mulher branca, de classe média, o Brasil reagiria com o mesmo silêncio? Se fosse a filha de um juiz? De um político? O caso ganharia outra velocidade, outro rigor, outra cobertura. Mas ela é indígena. É mulher. É pobre. Está no coração esquecido da Amazônia. E por isso, a impunidade ainda reina. Porque o corpo indígena, historicamente, nunca foi considerado sagrado neste país. Foi explorado, escravizado, invisibilizado. E agora, novamente, violado.
Quando a voz de uma mulher ecoa contra outra, a violência se repete
Nesta segunda-feira (28/7), a advogada Viviane Batalha Cacau — também mulher — afirmou publicamente que as acusações feitas pela indígena Kokama contra os policiais militares que a violentaram são falsas. A cena é revoltante. Em vez de empatia, escuta e responsabilidade, o que se vê é a tentativa de calar uma vítima já brutalmente silenciada pelo sistema.
A dor se multiplica quando uma mulher, que conhece bem os efeitos do machismo estrutural, opta por ser porta-voz de uma narrativa que descredibiliza outra mulher, ainda mais uma indígena, vulnerável e invisibilizada. Não se trata apenas de uma defesa jurídica: trata-se de uma escolha. E escolhas dizem muito sobre o lado em que cada um decide estar na luta por justiça.
O que vimos na fala da advogada não é apenas uma estratégia de defesa. É um eco do racismo institucional, da cultura do estupro e da histórica desumanização dos corpos indígenas. Dizer que a vítima “inventou” a violência, sugerir que buscava apenas “indenização”, afirmar que as imagens da cela superlotada foram “encenadas” — tudo isso não é apenas cruel. É perverso.
A balança da Justiça, nesse caso, se desequilibra quando aqueles que deveriam ser julgados continuam livres, armados e fardados, enquanto a vítima é submetida a mais uma onda de humilhações públicas. E o mais chocante: esse ataque à sua dignidade vem da boca de outra mulher. Como esperar que o sistema mude, se até mesmo quem sabe o peso de ser desacreditada escolhe reforçar a estrutura que oprime?
Não se trata de impedir o direito à ampla defesa, mas de reconhecer que há formas éticas de exercê-lo. Defender o indefensável com retórica cruel e acusações vazias não é justiça — é cumplicidade. Quando uma mulher silencia outra, ela não só se afasta da solidariedade entre as que lutam por sobrevivência, mas também reforça o pacto de impunidade que mata, estupra e cala diariamente tantas mulheres na Amazônia.
A omissão que custa caro
A legislação brasileira é clara: o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973) assegura que pessoas indígenas tenham tratamento diferenciado no sistema penal, considerando sua identidade cultural e os vínculos com suas comunidades. O regime de semiliberdade, executado com o apoio da Funai, é uma dessas garantias. Então, por que o direito da indígena ao regime especial foi ignorado desde o início? Por que essa mulher da etnia Kokama foi jogada em uma cela comum, ao lado de homens, exposta à tortura e ao estupro?
A resposta passa por uma palavra dura, mas precisa: racismo institucional. Não se trata apenas de uma falha individual, mas de uma cadeia de omissões, negligências e desprezos sistemáticos ao que a Constituição de 1988 chama de “pluralismo jurídico”. O Estado brasileiro, na prática, ainda trata os povos indígenas como cidadãos de segunda classe. Seus direitos existem na letra da lei, mas não são levados a sério pelas autoridades que deveriam aplicá-los.
O caso dessa mulher não foi tratado com o cuidado que exige uma prisão de uma pessoa indígena e muito menos de uma mulher indígena. Não houve consulta à Funai, não houve garantia de intérprete, nem avaliação cultural. Houve pressa para prender, e descaso para proteger. O sistema ignorou completamente a existência do regime de semiliberdade e, assim, expôs a vítima a uma tragédia que poderia ter sido evitada.
Essa omissão inicial não é menor. Ela foi o primeiro passo para tudo o que veio depois: o estupro, a tortura, a tentativa de silenciamento. O Estado não só falhou em proteger — ele criou as condições para a violência acontecer.
Quando a Justiça só age após a pressão pública
Somente após a ampla repercussão do caso — com denúncias nas redes sociais, pressão de movimentos indígenas e indignação pública — é que a Justiça do Amazonas nesta terça-feira 29 de julho, decidiu aplicar o que já estava previsto em lei: a transferência da mulher indígena para o regime de semiliberdade. Essa decisão tardia revela o que há de mais perverso no sistema: ele não age por princípio, nem por respeito aos direitos constitucionais, mas sim por constrangimento público. Se não fosse o clamor coletivo, essa mulher provavelmente continuaria esquecida, violentada, silenciada em alguma cela superlotada, longe de sua comunidade, de sua cultura e de qualquer noção de justiça.
É inaceitável que os direitos fundamentais dos povos indígenas só sejam lembrados quando a mídia denuncia, quando as imagens chocam, quando a pressão externa força uma resposta. Isso não é justiça — é reação. E reação tardia, num país que historicamente se omite diante da dor dos povos originários, é mais uma forma de violência.
BASTA!
Não podemos mais aceitar a “normalidade” dessa barbárie. O Brasil precisa parar de fingir que se escandaliza com a violência contra mulheres indígenas e começar a punir exemplarmente quem a pratica. O que aconteceu em Santo Antônio do Içá é um crime hediondo e coletivo, e cada autoridade que se calou diante disso deve ser responsabilizada moral e politicamente.
Este artigo é, portanto, uma cobrança coletiva por justiça, memória e reparação. Não apenas para a Kokama violentada, mas para todas as mulheres que, na Amazônia profunda, continuam sendo vítimas de uma guerra não declarada, uma guerra contra nossos corpos, nossas culturas e nossos direitos.
Exigimos: prisão imediata dos policiais acusados; extinção da pena da vítima, por reparação e justiça; indenização e acompanhamento psicológico; criação urgente de políticas mais efetivas de proteção para indígenas no sistema prisional; revisão das condições de custódia em todo o interior da Amazônia.
Que este caso não seja só mais uma estatística enterrada nos arquivos da vergonha nacional. Que seja o estopim de uma revolta ética, de uma justiça que não se ajoelha diante de fardas, e de um grito coletivo: NENHUMA A MENOS. NEM MAIS UMA. NEM DENTRO, NEM FORA DAS PRISÕES.

SEJA UM APOIADOR INFO.REVOLUÇÃO
Se não fosse esse tipo de denuncia, talvez até hoje esse caso não tivesse recebendo a devida atenção!
Parabéns pelo artigo 👏🏼👏🏼👏🏼
Esse artigo me atravessou. Não só pela brutalidade do caso da mulher indígena, mas pela forma como ele nos lembra das tantas outras violências que permanecem enterradas no silêncio da Amazônia. Ribeirinhas, quilombolas, periféricas... Quantas mais precisarão gritar? O título já é um grito de justiça, e o texto, um chamado urgente à sociedade. Que a denúncia se transforme em mobilização. Obrigado por escrever o que tantos sentem, mas não conseguem dizer.
Li esse artigo com o coração apertado. É impossível não se indignar diante de tanta brutalidade institucional e silêncio conivente. A autora consegue fazer o que muitos evitam: dar nome à violência, cor ao abandono, e rosto às vítimas. E ainda tem gente que diz que ‘não é bem assim’. Pois é exatamente assim e pior. O artigo não exagera. Ele apenas escancara uma realidade que o Brasil insiste em varrer para debaixo do tapete. Que mais vozes como essa se levantem. Porque ela falou. Agora é a nossa vez de gritar.
A conexão com a obra de Conceição Evaristo foi um acerto sensível e profundo, transformou dor em palavra e palavra em denúncia.
Parabéns pela escrita 👏🏼 👏🏼
Excelente 👏👏👏
É impossível sair ileso depois de acompanhar cada linha. Que esse texto ecoe onde a justiça ainda não chegou.